domingo, 7 de setembro de 2008

Coisas que eu gosto (de ver) 8:


Os vivos e os mortos (1987),  de John Huston

Este foi o último filme do grande diretor norte-americano John Huston, cuja obra é quase uma coletânea de clássicos do cinema, como O falcão maltês, O tesouro de Sierra Madre, Uma aventura na África, Moby Dick, O Homem que queria ser rei, O Pecado de todos nós,  À Sombra do Vulcão, cuja maior parte, por sinal,  ( e os títulos mencionados são prova disso ), é inspirada em obras literárias. 

Adaptação quase literal de um conto de James Joyce, O morto (com roteiro de Tony Huston, filho do diretor), "Os vivos e os mortos" é uma pequena obra-prima, o réquiem de um grande artista, uma reflexão ao mesmo tempo cética e carinhosa sobre a vida. Com mais de 80 anos, Huston dirigiu boa parte do filme numa cadeira de rodas, com um tanque de oxigênio do lado, interrompendo as filmagens vez por outra para "respirar" um pouco. Huston morreria um ano depois de lançar o filme. 

Dramaturgicamente falando, "Os vivos e os mortos" é aparentemente muito simples - reproduz quase que integralmente a estrutura do conto e quase reproduz o tempo de sua fruição: o conto, um pouco longo, é quase uma pequena novela; o filme, bem enxuto, dura apenas 80 minutos.  O filme parece durar o mesmo tempo que se leva para ler, sem pressa, o texto de Joyce.  Quase não há história ou trama no filme. A maior parte da ação se passa durante os festejos natainos na casa das tias de Gabriel Conroy, o protagonista do filme ( numa admirável interpretação do ator irlandês Donald McCann ) e o que vemos é quase um "super 8" ou vídeo doméstico, o registro de uma festa familiar, com velhinhas solteironas fofinhas falando reminiscências, danças de salão, cantorias, comentários maliciosos à socapa, um flerte dissimulado, o inevitável tio alcoolatra, até o aparecimento dos inevitáveis ressentimentos, de feridas antigas mal cicatrizadas, frustrações sufocadas em meio à ceia natalina. Ou seja, uma típica reunião familiar aparentemente festiva, mas permeada por uma tristeza ora disfarçada em nostalgia, ora explicitamente marcada pelas perdas. É um filme de sutilezas, de entrelinhas. A câmera nos convida a entrar naquela festa, assistimos às conversas sentados numa das cadeiras em volta da mesa onde os personagens ceam e se expõem. Tornamo-nos nós próprios convidados da festa, cada um de nós com um histórico de lembranças, perdas e mágoas semelhantes ao dos personagens. 

Em meio à essa festa, vai-se delineando um conflito envolvendo Gabriel e sua esposa, Gretta (interpretada de forma sublime por Angélica Huston, filha do diretor ). O conflito do conto e do filme refere-se à revelação de um grande amor do passado de Gretta, que emerge em meio às evocações nostálgicas e ao clima melancólico tipicos dessas festas familiares. Gretta tivera um amor na adolescência. Um amor casto, pueril, triste - porém verdadeiro e único. Ao dar conta de que Gretta ainda ama aquele rapazinho pobretão, que morrera de pneumonia décadas atrás, Gabriel percebe o vazio de sua vida, o fracasso de seu casamento aparentemente bem sucedido, a distância que o separa de sua mulher, de seus ideais, da suposta felicidade e do conforto pequeno-burguês em que crer viver. 

A segunda parte do filme se dá num quarto de hotel, onde o casal Conroy pernoita após a festa natalina. A neve cai e a esposa dorme. Insône, Gabriel olha a neve que cai "indistintamente, sobre os vivos e os mortos". A neve que cai leve, como a terra que se atira aos mortos, nos sepultamentos.  A cena é basicamente o monólogo em voice over de Gabriel, no qual ele rumina seu inventário de frustrações e constata a sua fragilidade diante da força esmagadora dos mortos, concluindo de forma melancólica sobre a insignificância da ( e não somente da sua ) vida.

Realizado por um homem no auge de seus 80 anos, um aventureiro, um "bom-vivant", caçador, hedonista, pugilista, mulherengo, beberrão, uma espécie de Hemmingway cinematográfico,  "Os vivos e os mortos" soa uma reflexão acridoce sobre a existência, é - em suma - uma despedida. O testamento cinematográfico de um autor cujos filmes sempre revelaram uma atração pelos derrotados, pelos grandes fracassos, pelos sonhadores frustrados. 

Dono de uma grande e variada filmografia, Huston nunca escondeu seu fascínio pelos out-siders, pelos ambiciosos derrotados, e se há uma unidade em sua diversa filmografia, ela se dá na compreensão filosófica do fracasso como fim único da experiência humana, o que se pode constatar em filmes tão diferentes em estilo como O tesouro de Sierra Madre, Os desajustados, Fat City, Moby Dick, Raízes do céu, O homem que queria ser rei, etc. Huston se definia como um "existencialista" e seus filmes, ainda que muitos possam ser definidos  como ( e são ) fantasia de aventura, inevitavelmente concluem de forma amarga, marcados pela derrota ou pela "meia vitória" , frustrante até, porém inevitável. "Os vivos e os mortos" parece refletir sobre a própria carreira de Huston, por ser um filme de pequenas proporções dentro de uma obra marcada por grandes produções. É um filme de baixo orçamento, com atores basicamente desconhecidos, realizado à margem de Hollywood ( não a toa, ganhou o prêmio de Melhor diretor no renomado Independent Spirit Awards, equivalente ao Oscar do cinema independente americano ). 

É um pequeno grande filme. Simples, comovente, filosófico. Altamente recomendável.

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