quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Grandes personagens da (minha) história (3)

Hugo Carvana

Sempre fui fã do Carvana. Era moleque e admirava seus trabalhos, fosse em cinema ou na televisão. Durante minha adolescência acompanhava um seriado que ele fazia na TV Globo, Plantão de Polícia. Ele interpretava Valdomiro Pena, jornalista veterano, boêmio, cínico, debochado porém, íntegro e humanista. Esse seriado, escrito por gente como Leopoldo Serran, Aguinaldo Silva ( àquela época um bom roteirista, ainda não tinha virado o noveleiro de sucesso de hoje, menos deslumbrado consigo mesmo e mais atento à qualidade de suas histórias ) e Doc Comparato, é das boas coisas que vi na televisão brasileira, muito superior ao que é feito hoje. 

No cinema, Carvana encarnava o carioca típico, malandro, indolente, mulherengo, sacana. De certa forma era o arquétipo do brasileiro macunaímico, numa versão urbana, o que pode ser constatado no simpático filme de Cacá Diegues, Quando o carnaval chegar (1972), que aliás foi o primeiro filme que vi com Carvana, nos meus tempos de cineclubista, na década de 70 . 

Seu primeiro filme como diretor, "Vai trabalhar vagabundo" (1973) é uma pequena obra prima. Além das muitas qualidades cinematográficas, o filme poderia ser analisado como um tratado sociológico do caráter do povo brasileiro, ao lado do já citado Macunaíma, de Mário de Andrade, das Memórias de um sargento de milícias, de Manoel Antonio de Almeida, de Simão, o caolho, de Galeão Coutinho, no campo da ficção ou de Casa-Grande e Senzala, de Gilberto Freire, Raízes do Brasil, de Sergio Buarque de Hollanda, Carnavais, malandros e heróis, de Roberto da Matta e O Povo brasileiro, de Darcy Ribeiro, no campo teórico. A galeria de malandros, trambiqueiros, porra-loucas que desfila ao longo do filme, com um humor anárquico e uma insáciavel sede de alegria e liberdade, proporciona uma subversiva radiografia de nosso país - um Brasil torto, desengonçado, vagabundo e mestiço, em tudo oposto ao Brasil Grande propagandeado pelo governo militar. 

Já estudante de cinema, fui conhecer o Carvana ator de grandes filmes como Os Fuzis, de Ruy Guerra, Terra em Transe e Dragão da Maldade contra o santo guerreiro, do Glauber, de O Anjo Nasceu, do Julio Bressane,  entre outros. Nesses filmes, sua atuação revelava um outro Carvana, diametralmente oposto àquele malandro carioca arquetípico - um ator sério, politizado, completamente integrado à proposta estética e ideológica vanguardista do cinema novo ( ou do seu sucedâneo mais transgressor, o cinema marginal, "udigrudi", no caso de Bressane ). Carvana se revelava como um ator de recursos ilimitados, que transitava com maestria pela comédia e pelo drama,  e ao mesmo tempo, um artista comprometido e identificado com o ideário de sua geração, o que lhe valeu algumas prisões e um período no exílio ( sua esposa e companheira de todas as horas, Marta Alencar, foi inclusive guerrilheira ). 

De certa forma, Carvana encarnava essa "persona" formada pelos dois lados distintos de seus trabalhos: era ao mesmo tempo o malandro boa praça, trambiqueiro do "bem", sacana e camarada e o porta-voz de uma geração politizada, um homem de seu tempo, idealista e combativo. Era uma projeção do brasileiro que todos gostariam de ser: alegre e ao mesmo tempo consciente, bon-vivant e guerreiro. Seu único defeito para mim era ser torcedor do Fluminense ( assim como outro dos meus ídolos, Chico Buarque, aliás, seu primo e compadre ), mas ninguém é perfeito.

Como diretor, Carvana faria o filme ícone do processo de redemocratização brasileira, Bar Esperança, o último que fecha (1982) comédia dramática que é uma espécie de inventário de sonhos, frustrações, perdas e ganhos do Brasil pós golpe militar. Um dos melhores filmes brasileiros de todos os tempos.

Seja como ator, diretor, ou simplesmente, na arte de viver, Hugo Carvana é um mestre.

Bem, toda essa apresentação talvez desnecessária, uma vez que o Carvana é uma figura pública bastante conhecida, é para balizar minha emoção ao ser convidado pra trabalhar com o Carvana no roteiro de seu filme Casa da Mãe Joana. Emoção e cagaço, tenho que confessar ( senti algo parecido quando fui trabalhar com o Ruy Guerra, mas disso eu falarei depois). Se já é assustador trabalhar com um artista do tope do Carvana, meu medo ainda foi maior pelo fato de ser seu admirador confesso. Várias coisas me assustavam: o temor de me deixar seduzir pelo fascínio do ídolo, de perder a capacidade crítica diante da admiração, o medo mesmo de não conseguir produzir nada à altura de seu talento. Por outro lado, tinha de enfrentar um grande fantasma: "substituir" ( se isso é possível ) Armando Costa, o grande parceiro de Carvana em seus melhores filmes (além dos já citados, roteirista também de Se segura malandro ). 

Mas para minha sorte, a idolatria subserviente foi imediatamente desmontada por uma camaradagem regada a alguns copos de cachaça e defumada por muita fumaça de charuto. E por muita piada infame, histórias do arco da velha, confissões de uma mente sacana. 

Ao longo do trabalho, percebi que o único risco que corria era mesmo não conseguir produzir nada de concreto,  porque perdíamos (?) tanto tempo falando besteiras que quase não dava para escrever. Marta, esposa e produtora do Carvana, suspirava dizendo que o Carvana não tinha saído da "fase anal", pois 99% das suas piadas eram referentes ao bom e velho cú - e a verdade é que, metaforicamente falando, o big bang do universo cômico do Carvana parece se originar justamente desta parte da nossa anatomia, o equivalente escatológico do buraco negro cósmico. 

Um parentêsis: recentemente, quando estava trabalhando no seriado Dicas de um sedutor, "baixou" em mim um "encosto carvaniano", e para desespero da Rosane Svartman, e de outros colegas de equipe, passei a maior parte do tempo do trabalho contando piadas infames, quase todas referentes à fase anal e seus derivados eróto-escatológicos ( o que era agravado por ter entre parceiros do trabalho dois outros quarentões com mentalidade e humor adolescente, Gustavo Cascon e Chico Soares ). Do que posso deduzir que bobeira é extremamente contagiosa.

Contagiosa e causa sequelas. E sequências. Foi tão prazeroso trabalhar com o Carvana que nem tinhamos terminado o Casa da Mãe Joana, e ele me chamou pra escrever um novo roteiro, Não se preocupe, nada vai dar certo, que está começando a produzir. E outro dia ele me chamou pra conversar sobre um novo projeto... Carvana tem esse "defeito",  nem acabou um trabalho já está pensando no próximo filme. O "Mestre" tem pressa: aos 71 anos de uma vida marcada por farras, porres, noitadas, prisões, exílio, dureza, alcool, drogas, loucuras, fumando horrores, com apenas um pulmão, um câncer vencido, e agora diabético ( e proibido de beber seu whisky, muito menos sua "branquinha" ), Carvana tem muita histórias e piadas pra contar e sabe que o tempo urge, ainda mais no Brasil, onde fazer cinema é uma atividade de risco, marcada por contratempos e imprevistos... 

Carvana está lançando essa semana ( dia 19 de setembro, sexta agora ) o Casa da Mãe Joana. Não vou dizer que é altamente recomendável, porque seria cabotino. Mas vejam o filme, é muito divertido. Pra quem gosta de bobagem, é um prato cheio.  

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