sábado, 1 de setembro de 2007

Deus, o ex-presidente e o filósofo francês


Muito comentada a entrevista do ex-presidente FHC à revista Piauí, onde ele disse que "o Brasil é isso aí mesmo que está, não tem muito jeito". Inúmeras vozes, desde o porta-voz do tucanato Arnaldo Jabor, passando por João Ubaldo Ribeiro ( que um dia escreveu um romance chamado "Viva o Povo Brasileiro", ora vejam como as pessoas mudam), e outros menos ilustres, se uniram em coro ao ceticismo do "Mestre das Trevas" ( não é ironia, afinal o governo FCH foi marcado, entre outras coisas, pelo triste e inesquecível "apagão", que deixou as cidades às escuras e forçou o país a um racionamento compulsório de energia elétrica e um escandaloso aumento nas contas de luz ) para condenar o país a uma triste e imutável incapacidade de mudar, como se fossemos uma nação atavicamente errada, corrupta, atrasada, sem perspectivas, em suma, um país sem jeito.

A reflexão do douto ex-presidente me fez lembrar aquela piadinha em que Deus fala, orgulhoso, que tinha criado um país na Terra que era uma maravilha. Que era dotado de uma rica natureza "em que se plantando tudo dá", com lindas praias, clima ameno, sem nenhum grande problema natural, tipo furacões ou terremotos, etc. Ao que o diabo retorquia: "mas isso é o paraíso". E Deus, mau que nem o picapau, acrescentava: "mas espera pra ver o povinho de merda que vou botar pra viver lá".

Esse tipo de piada grosseira e o raciocínio cético do dublé de sociólogo e político se entrelaçam como raiz e fruto de uma mesma ideologia: o Brasil é um país condenado a não dar certo.

A piada aponta o responsável sem maiores rodeios: é o povo brasileiro o único culpado pelo nosso eterno desacerto como país e nação.

Mais sutil, mas apontando na mesma direção, o ex-professor de Sorbonne, insinua que a responsabilidade do país ser "isso que aí está", que não tem jeito, que é atavicamente atrasado e corrupto, seriam do governo Lula e do PT.
O Brasil seria isso daí. Um povinho de merda, governado pela primeira vez na sua história por um presidente oriundo desta mesma merda de povo. Substancia da qual, obviamente, não foi moldado o ilustre sociólogo, sabidamente feito de outro barro, segundo alguns criado por Deus "à sua imagem e semelhança".
Seja por conta do "povinho de merda" ou por culpa do governo Lula, o Brasil é "isso que aí está, não tem jeito".

Nas entrelinhas, o ex-presidente parece nos dizer: já que o país não muda, já que é eternamente corrupto e incompetente, já que é impossível mudar as estruturas sociais, políticas e econômicas que nos impedem de romper o atraso, porque pensar em mudanças? Melhor deixar como está, de preferência mantendo-o sob a tutela de "profissionais" e não de "amadores". No caso, profissionais seriam eles, a elite que, sob diferentes aspectos e plumagens (desde o corvo Lacerda passando pelo abutre Collor e finalmente o PSDB tucano) sempre governou o país. Amadores seriam Lula e a esquerda, neófitos em governar um país que sempre foi propriedade privada de uma classe.

FHC deixa claro que somente a elite, por conservadora, austera e em sintonia com o capitalismo moderno seria preparada a administrar a "grande massa falida" que seria o Brasil. Enquanto que qualquer projeto reformista ou transformador seria inevitavelmente fadado ao fracasso, à decepção, a meter os pés pelas mãos e no máximo, apenas conseguiria repetir de forma tosca o que eles, FCH e demais governantes da elite brasileira, faziam e fazem com competência.

O que é estranho ( aliás, nem um pouco estranho, uma vez que já está em pleno curso a corrida eleitoral ) é que o discurso do Príncipe dos Sociólogos ( agora sim, é ironia ) vaticine que o Brasil é "isso aí, mesmo, não tem jeito", como se essa condição de erro existisse por si só, pelo atavismo nacional, por um quase determinismo histórico que nos condena ao atraso, e não por consequencia de ações, governos, projetos políticos que se sucederam, numa marcha progressiva, pensada, arquitetada, para preservação e perpetuação de uma elite política e econômica da qual o governo FCH foi talvez uma de suas manifestações mais sofisticadas.

É estranho ( de novo, nem um pouco estranho ) que Jabor, Ubaldo, e boa parte da mídia tenham alardeado a "surpreendente e reveladora" declaração do ex-presidente, como atestado de óbito moral e político da nossa nação, sem em um único momento se perguntar se o "isso que aí está" não seria minimamente consequência daquilo "que veio antes", de tudo aquilo que veio antes, de muito antes, mas que podemos ver claramente, não tão "antes assim", mas bem perto, aquilo que era há pouco tempo atrás, cinco anos atrás, se não quiseremos voltar tanto assim na história.

Não seriam a destruição progressiva, consciente e ordenada de nossa economia pela venda a preço de banana, e ainda assim, através do financiamento do BNDES, das nossas estatais para empresas estrangeiras ou em parceria com o alto capital nacional, verdadeiros cartéis transnacionais, o desmonte do serviço público e do próprio estado através de uma política de terceirização e pela filosofia do "estado mínimo", e a compra de políticos para a aprovação da reeleição do FCH, algumas causas desta condição de sermos "isso que aí está"?

O "fim da história" preconizado pelo neoliberalismo alardeava a imutabilidade do predomínio do capital sobre as nações, os povos, a história em si - o mundo estaria condenado a girar eternamente, cavalinhos de pau presos a um carrossel que roda ao som do realejo de Wall Street.

A sentença apocalíptica de FHC reproduz, com ar blasé dos céticos, o que na década de 90 dizia o igualmente apocalíptico Francis Fukiama, "filósofo" do fim da história, apóstolo do neoliberalismo, arauto da vitória "inconteste" do capitalismo: o ciclo de mudanças se encerrou, o comunismo foi sepultado nos escombros do muro de Berlin, a civilização chegou a seu ápice, personificado nos Estados Unidos, no capital transnacional, da globalização, com a dissolução dos nacionalismos, das culturas populares, a eliminação das diferenças, com o estabelecimento do pensamento único - o pensamento de Washington.
Neste sentido, não existe perspectiva de mudança, somos "isso que aí está".

Somos isso que aí está, não temos jeito, não adianta mudar, tudo continuará como dantes no quartel de abrantes, profetiza FHC, com um fatalismo que lembra Lombroso, ou, mais acertadamente, o Conde Gobineau, cuja foto ilustra esse texto. Pra quem não associa o nome à figura, explico: Joseph Arthur de Gobineau, o conde Gobineau, foi um filósofo francês, expoente da ideologia da superioridade racial branca, que serviu como embaixador no Brasil, durante o reinado de Pedro II, no séc XIX. Chocado com a formação racial brasileira, dizia que a miscigenação formaria uma população degenerada que irremediavelmente condenaria o Brasil ao fracasso.

"Não tenham ilusões, o Brasil é isso que aí está, não tem jeito" - proclama o ex-presidente. Talvez por culpa do "povinho de merda" que Deus, grande sacana, colocou aqui. Talvez por culpa da miscigenação de raças inferiores que criou uma população degenerada, estéril, fadada ao fracasso e à miséria, como vaticinava o racista Gobineau, para quem o Brasil não tinha futuro.

Um país maravilhoso habitado por um povinho de merda. Um país fadado ao fracasso, por conta da miscigenação de raças inferiores. Um país que é "isso que aí está, sem jeito, não tenham ilusões". Como isso soa tão parecido... Estranha convergência de pensamentos.
Aliás, nem tão estranha assim.

3 comentários:

Anônimo disse...

É sempre um prazer ler o que vc escreve.
Engraçado como a elite brasileira finalmente "descobriu" as mazelas do país. "Descobriram" que a educação pública é uma m..., que os hospitais públicos não existem e até andam com saudades dos trens.
Tudo isso sem se responsabilizar em momento algum pela destruição do pouco que o país jé teve. Sem admitir a própria omissão (ou cumplicidade) ao colocar os filhos em escolas particulares, ao invés de exigir qualidade naquela pública, ao preferir pagar planos particulares, ao invés de apoiar os profissionais da saúde qdo estes denunciavam o sucateamento do sistema de saúde pública, ao correr para a previdência privada e deixar a outra ao deus dará.
E vai tentar lembrar a essa corja (sugiro termos por eles o mesmo respeito que eles têm pelo povo brasileiro) que o único governo que vem tentando fazer alguma coisa útil com o lixo que eles deixaram é comandado por alguém desse povo que eles desprezam...

Anônimo disse...

"Cansei de Regina Duarte¡ Cansei de João Dória¡ Estou desgastado com essa história de Cansei¡ Vamos fazer um minuto de barulho para expressar nossas idéias¡"

Anônimo disse...

ótimo texto,e tamanha lucidez, vê-se a ânsia pela manobra da direita brasileira ansiosa pela volta ao posto... é, irônico, muito irônico. parabens pelo texto!!!