domingo, 9 de março de 2008

coisas que eu gosto (de ouvir ) 8:

Blood on the tracks, Bob Dylan, 1974.

Aproveitando a passagem de Bob Dylan no Rio, para mais uma "estação" de sua "Never Ending Tour", o jornal O Globo dedicou a capa e a matéria principal do RioShow ao velho bardo. A matéria procura fazer um inventário da carreira de Dylan, ao longo de quase cinco décadas, e, num paralelo ao lançamento do filme Não estou lá, de Todd Haynes, acaba definindo-o como um artista camaleônico, multi-facetado, uma espécie de Fernando Pessoa do rock´n´roll, com suas diferentes vozes poéticas, distintas entre si, e as multiplas "personas" encarnadas pelo músico.

A grosso modo, a matéria divide Dylan em quatro: o Dylan da época do folk rock, com sua gaitinha e violão e as canções de protesto, o pop star do meado dos anos 60, surrealista e empunhando guitarras elétricas, o Dylan irregular dos anos 70 e 80 e finalmente, o artista renascido, aos 66 anos ( 67 em maio próximo ). Bem, a divisão é arbitrária e superficial. Mas para uma revista de programação de fim de semana, com finalidade de divulgação de eventos e não de análise e crítica, digamos que categorizar a carreira de um artista tão importante e profílico como Dylan nestas quatro fases é até passável. O problema é quando o repórter resolve justificar as facetas de Dylan, classificando-as através dos discos lançados nos períodos abarcados em cada fase.

Ora, como todo artista, Dylan tem discos melhores do que outros, uns excepcionais, outros nem tanto, e claro, tem alguns discos sofríveis ( geralmente classificam seus discos da fase "cristã" como horríveis, mas é uma injustiça, afinal, Slow train coming e Shot of Love, a saber o álbum inicial e o final da trilogia cristã são discos muito bons, sendo que o primeiro contém uma das melhores músicas de Dylan de todos os tempos, a pulsante "You´ve gotta serve to somebody" e o último traz a belíssima "Every Grain of Sand", que sem nenhum exagero, podem fazer parte de qualquer boa antologia do músico ). Mas o que me incomodou na matéria foi, ao comentar a fase irregular da carreira de Dylan, ter citado o disco Blood on the tracks como um trabalho irregular, com "poucos belos momentos".

Tudo bem, o repórter pode ter se deixado trair pelo subjetivismo de seu gosto pessoal, mas classificar Blood on the Tracks como irregular é ir na contra-mão da maioria da crítica especializada, que considera este um dos melhores discos de Dylan de todos os tempos - comparado à Bringing It All Back Home, Highway 61 Revisited, Blonde on Blonde, John Wesley Harding, o recente Time Out the Mind e, claro, ao mítico Basement Tapes, álbum duplo que Dylan gravou com o The Band e manteve escondido por quase oito anos e que foi considerado uma lenda durante muito tempo.

Talvez pese contra Blood on the tracks o fato de ser um dos mais tristes e soturnos do artista, registro do fim do casamento de Dylan com sua primeira esposa, Sara Lowdes, e marcado pelo sofrimento, pelo rancor, pela desesperança e pela dor de cotovelo. É um disco denso, sofrido, amargo e amargurado. Afora a alegre quadrilha "Lily and Jack of Hearts", com sua letra quilométrica e brincalhona, as demais canções do disco são reflexões sobre a perda do ser amado. Um disco sobre perdas não é exatamente um disco agradável, porém Blood on the tracks é algo que se escuta da primeira a ultima faixa com prazer. Trata-se de uma pequena obra-prima musical, cheia de nuances, de poesia e com um Dylan inspirado como intérprete.

O disco abre com uma das melhores canções de Dylan, Tangled up Blue, que ele costuma cantar em quase todas as suas apresentações ao vivo, e dá o tom do disco: perda, culpa, solidão, melancolia, alguma auto-ironia. As canções cantam pequenas histórias de ajustes de contas de casais, reencontros frustrados, despedidas, saudades, nostalgia. Há um quê de Tcheckov nas letras e no clima do disco - da mesma forma que o escritor e teatrólogo russo, a dor e a tristeza de Dylan soam de forma acridoce, melancólica. É o tom de Simple Twist of fate, If you see her, say hello ( que aliás foi gravada por Renato Russo numa versão gay, mudando para If you see him, say hello, no disco Tributo a Stonewall, onde o cantor do Legião Urbana presta homenagem ao movimento homossexual ), de You´re a big girl now, Shelter from the storm e you´re gonna make me lonesome when you go ( recentemente regravada pela nova diva da musica cool, a francesinha Madeleine Peyroux, no seu também excelente disco Careless Love ). Esse tom acridoce é rompido pela raivosa e pungente Idiot Wind, uma das melhores ( e maiores, quase 9 minutos de duração ) músicas de Dylan de todos os tempos ( se bem que a melhor versão desta música está registrada num disco ao vivo, Hard Rain, lançado pouco depois. Ao vivo, toda raiva, mágoa e desesperança da letra, amplificada por guitarras elétricas distorcidas, soa inigualável ).



Como todo grande artista, Dylan fala de si e faz com que seus sentimentos mais íntimos ecoem em nossas próprias experiências pessoais. Blood on the Tracks, composto e gravado em meio ao turbulento processo de separação de Dylan e sua esposa, talvez seja um dos seus trabalhos mais confessionais - é o seu sangue que escorre das faixas.

Dolorido, melancólico, triste. Um disco essencial.

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