quinta-feira, 27 de março de 2008

coisas que eu gosto (de ver) 7:


Vida de cigano, de Emir Kusturica (1989).

Terceiro longa-metragem do diretor ( o primeiro "Quem se lembra de Dolly Bell?" não foi lançado e o segundo, o espetacular Quando papai saiu em viagem de negócios fez muito sucesso aqui, ao ponto de ser "citado" no belo filme de Cao Hamburger, "o ano em que meus pais sairam de férias"), estabelece os elementos dramatúrgicos e estéticos do cinema de Kusturica, a saber, o equilíbrio entre a comédia rasgada e o melodrama, o surrealismo, o kitsch, a extrema musicalidade, o humor negro, o erotismo, a riqueza visual de seus planos, o sentimentalismo, o patético, o lirismo, o fabulismo de suas narrativas, a estranha e harmônica convivência de humanos com animais, as estranhas relações entre pais e filhos, sempre conflituosas e ao mesmo tempo, amorosas ao extremo, o enforcamento ( essa característica é quase um fetiche: em todo filme de Kusturica há uma tentativa bem ou mal sucedida de enforcamento por parte de um de seus personagens ), as festas - geralmente bodas - que se tornam cenários de batalhas, as gags circenses, a índole infantil de seus protagonistas, a celebração da morte.
Algumas dessas características são próprias da cultura eslava, da qual Kusturica, ex-iugoslavo, de origem sérvia, nascido e criado em Sarajevo, na Bósnia, é sem dúvida um dos maiores divulgadores ( tanto em seu trabalho como cineasta, quanto na sua produção como músico, com sua banda The No Smoking Orchestra ).
Há evidentes influências de Buñuel e Fellini em sua obra, da mesma forma que é evidente o seu apreço pelas comédias malucas do cinema mudo, particularmente, de Mack Sennet e mesmo Chaplin, dos primeiros filmes.
Todavia, em Vida de Cigano há uma nítida aproximação com um dos clássicos do neo-realismo, Milagre em Milão ( onde aliás, se passa boa parte da história ), de Vittório de Sica e Zavattini. Há uma grande semelhança entre os mendigos e desafortunados do filme de de Sica e os ciganos de Kusturica. E também um jeito de filmar que desglamouriza cenários, atores, a própria ação, que remete à estética do neorealismo, em particular a Milagre de Milão, que seria (digamos ) uma incursão do neorealismo num ambiente mágico das fábulas.
E se podemos entender Milagre em Milão como uma possível ruptura de de Sica ( e mesmo Zavattini ) aos cânones do neo-realismo, com sua proposta de fábula não-realista, Vida de Cigano é uma ruptura ao tom ainda realista presente em Quando papai saiu de viagem à negócios e um mergulho radical numa narrativa mais mágica, surrealista, onírica, fincada no fabulismo dos contos populares.
É da estrutura dos contos populares que Kusturica vai extrair seus elementos dramatúrgicos, seus personagens, a estrutura moral da história, a musicalidade e a magia da trama. Os rompantes de comédia pastelão e os momentos sentimentais, trágicos, até, do bom melodrama são também frutos dessa absorção do elemento popular que caracteriza as narrativas de Kusturica. Podemos dizer que, em princípio, Vida de Cigano é uma comédia dramática, como igualmente comédias dramáticas são Quando Papai saiu em viagem de negócios, Arizona Dream ( única incursão de Kusturica no cinema americano, com Johnny Deep, Jerry Lewis, Faye Danaway e Lili Taylor, pessoalmente o filme de Kusturica que gosto menos ), Underground e mais declaradamente cômicas Gato Preto, Gato Branco e A vida é um milagre. Digo em princípio porque, à excessão desses dois últimos, poderíamos definir igualmente os filmes de Kusturica como dramas com laivos de humor.
Em geral, as histórias que Kusturica conta parecem mais enredos de dramas: o pai de família que é delatado pela amante desprezada e que é enviado para um campo de trabalhos forçados, na Iugoslávia de Tito ( Quando papai etc ), um grupo de partizans que é se escondem dos nazistas no porão da casa de um compatriota que posteriormente decide mantê-los presos e trabalhando a seu favor, mentindo sobre o término da guerra (Underground ), surgimento de uma máfia que se estabelece no vácuo do fim do regime comunista (Gato preto, gato branco ),a guerra civil que pulverizou a Iugoslávia, despertando ódios étnicos entre sérvios, bósnios, croatas, kosovares ( A vida é um milagre ). Temas que não parecem mais adequados para provocar o riso. Mas da mesma forma que Kusturica faz piada com as tentativas de enforcamento de seus personagens ( a mais dramática ou patética em Quando papai saiu de viagem à negócios, a mais engraçada, sem duvida, a tentativa de Lily Taylor se suicidar com suas meiacalças, em Arizona Dream ), ele consegue extrair humor e poesia destes enredos "pesados". Em Vida de cigano, a miséria e a mercantilização da pobreza, em paralelo com o processo de corrupção do protagonista, é o assunto pesado em que Kusturica vai exercitar sua habilidosa capacidade de provocar risos e emocionar com um lirismo mágico, pungente.
Numa aldeia de ciganos, o jovem Perhan (Davor Dujmovic ) vive com sua avó Khaditza ( Ljubica Adzovic ), sua irmã caçula Danira, que tem um pequeno defeito numa das pernas e o tio fracassado Merdzan. Perhan possui poderes telecinéticos ( é uma espécie de Ury Geller - lembram-se dele? - capaz de mover talheres e outros objetos metálicos ), tem como melhor amigo um peru e é apaixonado pela jovem Azra, mas a família da moça o rejeita por ser pobre. O infortúnio amoroso será motivo para uma tentativa fracassada de suicídio de Perhan por enforcamento. A vida do rapaz muda com a chegada de tio Ahmed (Bora Todorovic ), irmão de Merdzan e ao contrário, rico e bem sucedido. Ahmed fica encantado com os poderes telecinéticos do rapaz e decide levá-lo com ele para a Itália, onde poderá ganhar muito dinheiro. O rapaz recusa-se, pois teria que separar-se da avó, do peru e de Azra ( nesta ordem de afeto ). Num jogo de cartas, Merdzan perde a casa para Ahmed, que propõe trocar a dívida pela tutela dos dois sobrinhos. Diante do problema, Khaditza arma um estratagema: propõe que Perhan siga com o tio para levar a irmã para ser operada, e assim, Perhan e Danira seguem com Ahmed para Milão. Lá descobrem que o tio na verdade é líder de uma gangue de ciganos, envolvido com todo tipo de contravenção, e que não tem escrúpulos em colocar Danira para esmolar nas ruas e forçar Perhan a usar seus poderes em roubos. A vida dos dois irmãos se torna um inferno digno das melhores narrativas de Charles Dickens ( há muito do judeu Fagin de Oliver Twist no inescrupuloso porém divertido Ahmed ). Boa parte desse momento da trama se passa aos pés da bela catedral de Milão ( por sinal, onde se passa também boa parte da ação de Milagre em Milão ).
Após muitos infortúnios e humilhações, a sorte de Perhan muda. Um derrame irá abater Ahmed e tornar Perhan em seu sucessor, no comando da gangue. Corrompido pelo dinheiro, Perhan irá paulatinamente a afastar-se de seus ideais de juventude e enveredar na decadência moral, afastando-se da avó, da irmã e mesmo, repudiando Azra, com quem acaba casando ( agora que fica rico, é plenamente aceito pela família dela ). O jovem Perhan torna-se um homem mau, talvez até mais inescrupuloso que seu tio Ahmed.
Ao final, uma sucessão de incidentes trágicos irão redimir o jovem, que consegue levar sua irmã de volta à aldeia natal. O enredo ( e mesmo o desfecho ) é trágico, mas Kusturica consegue fazer de Vida de cigano um belo ( e muitas vezes hilariante ) poema cinematográfico.
Vejam um belo trecho do filme (escolhi uma sequência em que se apresentam quase ou senão todas as características que enumerei na obra de Kusturica, e claro, por ser um momento belíssimo ):



Há outras cenas notáveis, como o momento em que o jovem Perhan vira homem, ou o comovente reencontro de Perhan con Danira, nas ruas de Milão, e a mágica morte de Azra, quando ela dá a luz ao filho de Perhan ( com direito a outro elemento chave na obra de Kusturica: a levitação como parte do ritual da morte, os moribundos flutuam nos filmes de Kusturica). Com este magnífico filme ("hipnotizante" como define o cartaz norte-americano, que ilustra esta postagem), Kusturica ganhou o prêmio de melhor diretor em Cannes, 89. Creio que é o filme do Kusturica que gosto mais - e minha incerteza se dá porque gosto muito dos filmes dele, mesmo do Arizona Dream, sabidamente o mais fraco (mas ainda assim, um filme bem interessante e divertido).
Minha sugestão é correrem às locadoras e tentarem encontrar uma cópia do filme em VHS, pois até o presente momento não foi lançado em dvd aqui no Brasil.
Não esmoreçam diante das dificuldades ( que antecipo serem muitas). A beleza da narrativa, a riqueza visual, o excelente trabalho dos atores, a belissima trilha sonora de Goran Bregovic, a mescla de drama e comédia, o registro carinhoso mas não complacente do povo cigano, em suma, o talento de Kusturica, sem duvida, um dos mais importantes e interessantes cineastas da atualidade, justifica qualquer trabalho.

Um comentário:

Nakor disse...

É um dos meus filmes preferidos. Quando o consegui ver, pois porque tambem por aqui só em descarregando da net porque não há outra forma de o arranjar.
cumprimentos pelo blog, descobri hoje e vou lendo, lendo lendo :)