sexta-feira, 23 de novembro de 2007

entranhas cinematográficas ( e ideológicas ) de Tropa de Elite (final)


Acho que ninguém aguenta mais ouvir falar de Tropa de Elite, tampouco sinto vontade de insistir nesse assunto. Mas não poderia deixar de fechar a série de títulos referenciais para uma plena compreensão do filme do José Padilha sem falar daquele que, sem dúvida, é seu melhor espelho: Nascimento de uma Nação, de D.W. Griffith (1915).
Resguardadas a distância histórica e as diferenças técnicas e mesmo, estéticas de um filme e do outro, há uma clara semelhança na estrutura dramática de ambos os filmes. Nem tanto pela óbvia heroicização do abjeto ( uma tropa militar acima do bem e da constituição, que tortura e mata, em nome da "lei" no caso dos homens de preto de Padilha, e os Ku-Klus-Klans de Griffith ) mas principalmente pela construção do "vilão".

Em Nascimento de uma nação, Griffith, dentro de sua lógica sulista, portanto, com o olhar ressentido do derrotado, deforma a realidade e a história transformando em vilões os abolicionistas e em feras desumanas os ex-escravos libertos. Dentro de seu original e particular ponto de vista, as vítimas são os fazendeiros escravocratas brancos sulistas, derrotado por uma tropa de mestiços nortistas, que se vêem constantemente ameaçados e humilhados pelos cada vez mais arrogantes negros libertos. Há tres vilões no filme: o branco nortista e abolicionista Stoneman, seu braço direito Lynch, mulato ambicioso e, finalmente, a população negra desaforada e animalesca, que se vira contra seus antigos senhores com petulância e brutalidade.


Lógica muito semelhante à elaborada por Padilha no Tropa de Elite: o vilão do filme é a classe média que, segundo o filme, alimenta e sustenta o tráfico, a classe média que defende os direitos humanos dos bandidos e impede a ação erradicadora dos "homens de preto", em suma, a porção dita liberal da classe média, que seria a principal responsável pela força do narcotráfico em nosso país.
Sem muito esforço comparativo, em Tropa de Elite o papel de Stoneman ( o branco que por conta de seus ideais liberais trai a sua raça e favorece tibia e irresponsavelmente a ascensão dos ex-escravos brutos e rancorosos ) seria representado pela classe média liberal, pelos jovens de classe média que consomem drogas, pelas ONGs que mantém relações dúbias com o tráfico; Lynch, o mulato ambicioso que se aproveita do "liberalismo" do patrão branco para ampliar seu poder seria o Baiano, o traficante que cheira pó com os branquinhos de classe média da ONG mas que não reluta em fritá-los no "microondas" quando contrariado ( da mesma forma que Lynch sequestra e tenta possuir sexualmente a filha de Stoneman, seu protetor ); finalmente, a massa de ex-escravos brutais e animalescos seriam os anônimos soldados do tráfico, os favelados que "ameaçam" cada vez mais os moradores do asfalto, a classe média branca e indefesa.
Tanto Birth of a Nation quanto Tropa de Elite deixam claro quem são os heróis na medida em que estabelecem exemplarmente quem são os seus vilões. Os dois filmes demonstram didaticamente as condições que favorecem o surgimento ( e a necessidade ) de tropas paramilitares, com poderes ilimitados, como única forma de defesa da sociedade civil. E se os heróis cometem "excessos" ( a foto que ilustra esta postagem mostra o linchamento de um negro pelos KKK, num momento de violência muito semelhante às cenas de tortura cometidas pelos "caveiras" de Padilha ), a narrativa de ambos filmes justifica e/ou racionaliza o que poderia ser um deslize na conduta dos heróis: trata-se de uma guerra e o inimigo é muito pior, muito mais desumano e, principalmente, mais forte e mais numeroso. Os KKK lincham o negro que tentara estuprar uma inocente e adorável donzela branca, provocando o seu suicídio ( ela prefere se matar a ser possuída por um negro). Os "caveiras" brutalizam uma jovem moradora do morro ( não tão inocente assim, uma vez que era namorada do traficante Baiano ) e quase empalam um marginal com o cabo de uma vassoura, na cena mais brutal de Tropa de Elite, movidos pelo desejo de vingar seu companheiro covardemente assassinado pelos traficantes, com um tiro pelas costas.

Muito criticado, desde à epoca de seu lançamento ( considerado ao lado de O Judeu Süss, realizado na Alemanha Nazista, como um dos filmes mais racistas já realizados ), Birth of a Nation talvez pudesse ser defendido hoje em dia pelo mesmo argumento usado pelos defensores de TE: Griffith estaria apenas retratando o ponto de vista de um racista e, dentro de sua psicopatia, um racista enxergue realmente os negros como vilões e os antigos escravocratas como vítimas indefesas, que são defendidos pelos paladinos encapuzados da Ku-Klus-Klan. Da mesma forma que Padilha "apenas" retrata o ponto de vista de um policial linha dura, sem entretanto compartilhar ou defender este mesmo ponto de vista.
Comparando os filmes, e a reação das platéias de um e de outro, por que isentar Padilha e taxar Griffith de reacionário, ou, por outro lado, por que não "relativizar" o discurso de Nascimento de uma Nação, fingindo que não é racista e facistóide, argumentando que Griffith "apenas" filmou o ponto de vista dos escravocratas sulistas derrotados pela União, sem compartilhar de seus ideais ou tampouco ser um entusiasta dos KKK?

Difícil, não acham? Diria quase impossível.

Em tempo: ao final de Nascimento de uma nação, Stonema cai em si do perigo personificado pelos negros que até então defendia e se alia aos escravocratas, colocando-se sob a tutela dos paladinos encapuzados. Lynch é morto e os negros "petulantes" reconduzidos ( sob a mira das armas dos KKK ) no seu devido e submisso lugar. De certa forma, é essa a mensagem final que Tropa de Elite passa ao seu público: assim como Stoneman, cabe à parcela mais esclarecida da classe média renunciar ao seu liberalismo, parar de proteger os traficantes ( o que é a defesa dos direitos civis e humanos senão "fazer vista grossa" para a bandidagem? ), e deixar que os "caveiras" reestabeleçam a ordem.

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