domingo, 21 de outubro de 2007

coisas que eu gosto (de ver) 4:


Noite Escura, filme de João Canijo, Portugal 2004.

Grande filme português, de um diretor pouco conhecido aqui no Brasil ( apesar de já ter feito um filme, A Filha da mãe, estrelado pelo José Wilker ). Conheci o João Canijo no Festival de Cinema Latino de Chicago, em 2002. Éramos quase que dois peixes fora d´água. Eu porque estava representando como roteirista o filme da Sandra Werneck, Amores Possíveis ( e em festivais de cinema, se você não é o diretor ou produtor do filme, ou então o ator principal, você fica ali, meio perdido, ninguém te dá muita atenção, roteirista então...). E o João, por ser português. Se no meio daquela multidão de cineastas hispânicos, latino-americanos, ser brasileiro já era motivo de estranheza ( apesar de uma estranheza carinhosa, afinal, nossos hermanos latinos simpatizam gratuitamente conosco ), um cineasta luso, com um filme totalmente rodado em Paris, era realmente uma espécie de ET. O filme que ele tinha em concurso era o belo Ganhar a vida, que retrata a migração portuguesa contemporânea para os países mais desenvolvidos na Europa "sem fronteiras". Nos encontramos numa festa promovida pelo sempre simpático Pepe Vargas, diretor do festival, um convescoste bem familiar, nada a ver com as festas nababescas do cinema brasileiro, uma coisa bem íntima, um churrasco no quintal de sua casa, num simpático subúrbio de Chicago. De modo que o brasileiro e o português acabamos por juntarmos nosso deslocamento e ficamos papeando sobre os cinemas de nossos países.

Papeando é uma licença poética. Meu inglês é, como naquela comunidade do orkut, "too bad", meu espanhol só funciona depois de algumas doses de birita, mas o maior problema linguístico é entender o português falado pelos portugueses. Às vezes parece russo. Realmente, é uma coisa que dificulta em muito a circulação do cinema português no Brasil. "Aquela língua" só consegue ser compreendida com legendas. E pra complicar, o Canijo fala com aquele acento gutural típico dos moradores do Porto, mais fechado e hermético que o português cantadinho dos alfacinhas, os lisboetas. O irônico é que o nosso português é plenamente compreendido pelos lusos, por ação e graça das telenovelas globais, que inundam a programação televisão portuguesa há mais de 20 anos - há casos de emissoras que passam novelas das duas as dez...

Mas não é pra falar dessa conversa de meio-surdos em Chicago que estou escrevendo, e sim para comentar um filme do Canijo, que acabei assistindo em 2004, por ocasião do Festival de cinema Luso-brasileiro de Santa Maria da Feira, onde ambos fomos jurados. Noite escura passou, fora de competição. A despeito da dificuldade de compreensão idiomática, o filme me impressionou sobremaneira. É um filme muito forte, brutal, com uma mis-en-cene elaboradérrima, um ritmo tenso, sempre crescente, uma fotografia cheia de movimentos de câmera que às vezes lembram a movimentação da câmera de um Altman, passando de assuntos e ambientes, criando uma espécie de labirinto visual, onde os personagens parecem aprisionados e sem saída. Ao mesmo tempo, o uso de câmera na mão, sempre tensa e angustiante, encurralada nos limites de um amabiente quase sempre fechado, remete ao cinema de Cassavetes É um filme bastante tenso, sufocante. A trama é inspirada na tragédia de Eurípedes, Ifigênia em Aulis, transmutada para um Portugal moderno, repleto de contradições, dividido entre a fartura dos investimentos da comunidade européia e a agonia de suas tradições e a corrupção de seus valores.

A peça de Eurípedes fala do drama do rei de Micenas, Agamemnon, que é obrigado a sacrificar a filha mais jovem, Ifigênia, a fim de aplacar aos deuses, que vinham castigando seu reino com a seca e a devastação. Agamenon tem outra filha, Electra, que nutre pelo pai uma espécie de amor incondicional. Já a esposa de Agamenon, Clitemnestra, ao descobrir que o marido sacrificara a filha caçula, acaba matando-o.

Na adaptação de Canijo, a ação se passa numa boate de prostituição. Pressionado por mafiosos russos, Nelson, o dono do bordel aceita oferecer sua filha mais jovem como pagamento de suas dívidas. A decisão do pai é questionada pela filha mais velha, que tenta salvar a irmã do destino cruel: tornar-se prostituta. É um filme dominado pelas mulheres, determinadas, enérgicas, enquanto os homens parecem rastejar na sua impotência ou covardia. Nelson ( em ótima interpretação de Fernando Luis) , é tíbio, pusilânime em sua covardia em aceitar o destino cruel que se lhe apresentam. Apesar de amar a filha, tem mais amor ao próprio pescoço. Ele é pressionado por todos os lados: pelos russos, pela filha mais velha ( interpretada por Isabel Batarda, belíssima atriz, aqui enfeiada, masculinizada ), pela esposa Celeste, aparentemente cínica e alienada ( numa interpretação cheia de nuances de Rita Blanco, espécie de atriz-fetiche de Canijo ), pelos próprios remorsos - sabe que é um patife covarde, mas isso não o impede de sofrer.

A trama de Canijo é narrada pelo ponto de vista de Carla, a filha mais velha e mais feia. E é o seu desespero em ver a família ser destruída pela covardia do pai, que no entanto ama desesperadamente. Ela tenta dissuadir o pai, sem sucesso, tenta pedir auxílio à mãe, que ignora seu desespero, tenta ajudar Sônia, a irmã caçula, que entretanto rechaça seu socorro. A percepção de sua incapacidade de mudar o destino, traçado por mãos mais fortes que a sua, vai enlouquecendo progressivamente a personagem.

Num momento intenso do filme, ao propôr que o pai lhe entregue aos russos, no lugar da irmã caçula, ela procura mostrar que, apesar de feia, é muito mais experiente que a outra. Ela seduz o pai, numa cena cheia de sensualidade doentia, incestuosa, que culmina numa felação nervosa a qual o pai não consegue resistir. Essa cena é talvez a melhor representação do "complexo de electra" em cinema ( em detrimento às diversas representações do mito do amor edipiano, que gerou filmes tão dispares quanto O sopro no coração, de Louis Malle, La Luna, de Bertollucci, Os imorais, de Sthephan Frears e, mesmo, os incompreendidos, de Truffault). Mas nem pelo sexo ela consegue demover o pai tíbio e covarde.

O filme é impregnado de violência. A abertura do filme mostra Carla lavando o assoalho sujo de sangue de uma prostituta russa, que aparece com a garganta dilacerada. Mais adiante, um sócio de Nelson será esfaqueado na jugular, em meio a uma discussão com o chefe dos mafiosos russos. Uma outra prostituta é enforcada - seu corpo despenca do teto pesado e inerte. No final, há um tiroteio, muitas mortes - enquanto isso, mulheres em trajes sumários, seminuas exibem-se monotonamente no palco da boate, num contraponto que remete à disputa entre Eros e Thanatos, com a predominância deste.

Numa tentativa final de salvar a imã, Carla parte para o sacrifício, pistola na mão, enfrentando os russos. Mas mais uma vez, ela falha. E morre. Sua morte não impede que Sônia seja levada pelos mafiosos russos, tampouco salva o pai. Nelson, causador e vítima de sua própria desgraça, é morto por Celeste. Ao final do filme, enquanto os corpos de Carla e Nelson abraçados e unidos pelo mesmo sangue derramado jazem no estacionamento, a noite segue na boate, onde clientes e prostitutas seguem seu cotidiano aviltante, sem perspectivas, mais monótono do que trágico.

Aliás, dentro do conceito de tragédia grega, as prostitutas e clientes da boate de Nelson funcionam como uma espécie de côro, que de certa forma comenta, num segundo plano, aspectos da história e, principalmente, a questão da prostituição - que seria uma metáfora da situação de Portugal, corrompido pelos euros que mudaram radicalmente o país, sem no entanto resolver nenhum de seus problemas estruturais ( tanto que é um dos países mais pobres da comunidade européia ).

O filme é tenso, duro, nervoso, de um colorido neurótico - há uma preponderância das cores vermelhas e verdes, por sinal, cores da bandeira portuguesa. Num dado momento da trama, a personagem Sônia, a irmã caçula, canta uma triste canção, uma espécie de fado - e o que é o fado se não uma junção entre a premissa fatalista da tragédia grega e a melancolia incurável dos portugueses? A canção funciona como uma espécie de comentário melódico ao filme, mas também é um contraponto - é um raro momento de doçura ( ainda que uma doçura agônica, acridoce ) em meio à nervosa movimentação da câmera e a cada vez mais tensa atuação dos atores.

É uma pena que a sonoridade do português de Portugal difira tanto do nosso português. Isso impede que um filme impressionante como Noite Escura possa vir ser exibido no Brasil. Pelo menos, não sem legendas. Tenho uma cópia em dvd que só dá pra assistir com auxílio das legendas em inglês.

É lamentável porque, além de privar o público brasileiro do cinema de Canijo, sem dúvida um dos cineastas portugueses mais interessantes, figura constante em Cannes - Noite Escura concorreu à Palma de Ouro e também foi o filme português indicado ao Oscar de filme estrangeiro - , essa dificuldade idiomática entre Brasil e Portugal acaba criando o mito de que o único cineasta português é Manoel de Oliveira, cujos filmes acabam passando no Brasil com mais frequência mas pelos quais eu não tenho a menor paciência (apesar de achar simpático o velhinho continuar filmando a "bordo" dos seus noventa e tantos anos, mas daí gostar de seus filmes, há uma grande distância ).

João Canijo e Pedro Costa ( O quarto de Vanda, Juventude em marcha ) são os melhores realizadores portugueses da atualidade, sendo que o cinema de Canijo me agrada mais, pela sua elaborada dramaturgia. Pena que falemos a "mesma" língua. Fossem cineastas espanhóis ou franceses, ou mesmo romenos, seus filmes teriam melhor aceitação aqui, no Brasil.

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