quarta-feira, 3 de outubro de 2007

O retorno do Jedi ou a volta do boêmio - Eduardo Coutinho reencontra seu melhor cinema





Jogo de cena, de Eduardo Coutinho.

Confesso que achava que o cineasta Eduardo Coutinho estava nos "devendo" um bom filme há tempos.

Autor dos magistrais Cabra Marcado pra Morrer ( sem dúvida, um dos melhores filmes brasileiros de todos os tempos ), Santa Marta-duas semanas numa favela, Boca do Lixo, Santo Forte e Edifício Master, Coutinho tinha demonstrado uma certa "preguiça" no Babilônia 2000, que, apesar de simpático, era uma espécie do "mesmo do mesmo" do cinema que, desde "Boca do Lixo, o diretor vinha propondo. Uma sala de visitas para pessoas simples, gente do povo, anônimos, geralmente em condições adversas, falarem de suas vidas anônimas, se exporem, cantarem (desde Boca do Lixo todos os filmes de Coutinho têm um "número musical" ), em suma, brilharem. O cinema humanista de Coutinho parece ecoar os versos de Caetano ( na verdade, inpirado em Maiakovsky ) que dizem: "gente é pra brilhar, não pra morrer de fome". Mas se havia simpatia ( e todo carioca sabe que "simpatia é quase amor") em Babilônia 2000, a impressão que passava ( ao menos, para mim ) era de uma visível indolência, uma repetição, como se o diretor houvesse encontrado uma "fórmula" que, como sempre acontece, acaba por diluir a força expressiva de seus melhores filmes.

Depois veio "Peões", que considero um dos filmes mais reacionários já realizados no Brasil. Vou melhorar a frase: um dos filmes mais reacionários já realizados por um cineasta nitidamente identificado com os valores sociais e com as classes menos favorecidas. Um amigo em comum me disse que Coutinho não gostava do Lula. Gostar ou não do Lula é um direito do Coutinho, mas daí fazer um documentário impregnado com essa antipatia, disfarçando-o de forma a parecer "neutro", são outros quinhentos. Peões é um filme que busca o tempo todo "demonstrar" que, enquanto Lula se "deu bem", seus antigos e anônimos companheiros de fábrica e de greves tinham ficado para trás, tinham fracassado, como se fossem apenas uma massa de manobra para a ascensão do líder operário que viria tornar-se presidente do Brasil. Para defender a tese, Coutinho chega a cometer um dos "pecados capitais" do documentário: o falseamento da "verdade", através da omissão de fatos que, se expostos, revelariam o parcialismo de seu ponto de vista. Um exemplo: para mostrar que a maioria dos companheiros de Lula acabou no ostracismo, na pior, enquanto o atual presidente ascendia politica, social e mesmo economicamente, Coutinho "omite" que um daqueles anônimos, que desfilam pelo filme, na verdade é Djalma Bom, um dos fundadores do PT, ex-deputado federal e atualmente vice-prefeito de São Bernardo. No filme, ele é apresentado apenas como um ex-operário, que tocava violão ( olha aí o número musical ) nos comícios, reforçando a tese (reacionária ao extremo, digna de um Diogo Mainardi da vida ) de que só Lula teria obtido vantagens nas famosas greves do final da década de 70, enquanto que a massa, "aqueles anônimos que realmente fizeram a greve", no final das contas, apenas perderam. Questionável manipulação da verdade para defender uma tese, por si só lamentável.

Por muito menos, por editar "desfavoravelmente" o depoimento de Charlton Heston, porta voz da famigerada NRA, quase crucificaram o Michael Moore...


Depois veio "O Fim e o Princípio", que, sinceramente... é uma nulidade, uma chatice sem par, um filme que parece ter sido realizado apenas porque deram dinheiro para o diretor filmar "o que bem entendesse", como ele mesmo diz, na narração, no ínicio do documentário (?). Nem a famosa capacidade do Coutinho em extrair depoimentos sinceros e espontâneos de seus entrevistados, que torna seus filmes tão pessoais e interessantes, parece funcionar. Tudo soa meio forçado, ele chega ao ponto de perguntar a uma octogenária se ela tem medo da morte. Feito por um dos muitos imitadores do Coutinho ( aliás, uma praga na cinematografia brasileira recente, quase 80% dos estudantes de cinema fazem filmes pastichados dos filmes do Coutinho ), O Fim e o Princípio teria sido ignorado ou mesmo tratado como pueril. Mas os fãs de Coutinho, assim como seus imitadores ou discípulos, são complacentes, e o filme foi elevado à estratosfera das obras primas. Houve quem enxergasse naquela "conversa pra boi dormir" uma espécie de "prosa roseana" cinematográfica, seja lá o que isso venha significar... mas a maioria da crítica no Brasil é assim, mesmo. Ou totalmente bajuladora, ou de uma fúria sanguinolenta.

Por essa razão, há algum tempo considerava Coutinho no "vermelho", estava nos devendo um filme que fizesse juz à sua fama e ao seu talento. Eis que surge "Jogo de Cena". Talvez o filme do Coutinho mais rico, do ponto de vista da linguagem cinematográfica, desde Cabra Marcado. Ainda que seja um filme no formato "talking heads", cabeças falantes, planos próximos de rostos, closes, pouquissíma ou quase nenhuma mudança no enquadramento (afora uma ou outra inserção de planos dos entrevistados subindo uma escura escada em espiral, que leva ao palco do teatro onde ocorrem as entrevistas ), o filme cria um espetacular jogo metalinguístico, a partir do confronto entre realidade e ficção, com atores e personagens reais alternando depoimentos, criando uma rica dialética, na qual o expectador é apresentado aos mecanismos da criação artística. Como não lembrar de Brecht? Como não lembrar de Pirandello? O filme provoca diversas reflexões. O que é realidade? O que é simulação? O que é criação? O que é material dramático? O expectador é questionado o tempo todo, forçado a pensar, melhor: convidado a pensar, pois, mais do que em qualquer outro de seus filmes, Coutinho nos transporta da poltrona do cinema para um banquinho, ou, mais comum numa filmagem, para uma "três tabelas" colocada ao lado da câmera e diante do entrevistado, partilhando com o diretor o convívio direto com aquelas pessoas, aquelas mulheres, personagens reais ou interpretes, e mesmo essas, pessoas reais, despojadas da "máscara", desencarnadas dos seus personagens.
O que poderia ser apenas um "jogo de cena", aos moldes do quadro que o Jorge Furtado criou no Fantástico (onde atores e personagens reais contavam histórias, cabendo ao expectador advinhar quem era quem ), nas mãos habéis de Coutinho, com ajuda da montagem brilhante de Jordana Berg, vira um profundo estudo sobre o ser humano, mais especificamente, sobre a mulher.

"Jogo de cena" talvez seja o filme mais profundamente feminino já realizado por um homem, similar cinematográfico da poética de Chico Buarque ( reconhecidamente, um homem que consegue entender e traduzir como poucos a essência feminina ). Os depoimentos, tanto os reais, como os interpretados, são reveladores da "dor e a delícia de ser o que é”, como dizia aquela canção do Caetano ( outro que também entende e muito da anima feminina ). Por outro lado, o depoimento das atrizes sob o processo de composição das "personagens" que interpretam é uma aula de dramaturgia. Penso que, desde Nossa Música, de Godard, não via um filme tão imprescindivelmente didático, no sentido de ensinar cinema. Devia ser incluído nos currículos de todas as escolas de cinema, não na cadeira de documentário, mas na área de dramaturgia, especificamente em direção de ator.
"Jogo de Cena" consegue ser profundamente intelectual e ao mesmo tempo, emocional, sensível, comovente. Porque no fundo, o filme aponta a gênese de toda criação artística e intelectual : o ser humano, com suas qualidades e defeitos, com sua beleza e feiúra, com sua força e sua fragilidade. Seja numa atitude mimética, seja questionando os processos de simulação da realidade, a função da arte no fundo é do recompôr a nossa humanidade estilhaçada, e o artista, seja ele o ator, o poeta, o cineasta, é aquele que recolhe nossos fragmentos perdidos e nos devolve a unidade perdida. Nos reintegra. Nos totaliza. "Jogo de cena" não mostra "versões" diferentes de um mesmo ser. Ele completa cada uma daquelas mulheres, torna aquelas mulheres anônimas em seres humanos ímpares, únicos, cada qual ciente da " dor e da delícia de ser o que é". E no palco de Coutinho, tanto as atrizes famosas, como as menos conhecidas e aquelas mulheres anônimas, todos brilham com a mesma intensidade. "Gente é pra brilhar, não pra morrer de fome" - é isso o que o filme nos mostra.
Há, entre muitos achados geniais e tocantes, um momento especialmente mágico. Uma das personagens canta uma canção ( não seria um filme do Coutinho sem um personagem cantando, não é mesmo?). Ouvimos, em off, Marília Pera, a atriz que "a interpreta", cantando em contraponto a mesma canção. Através do som, realidade e simulacro se unem, pessoa e intérprete se fundem, é um momento de rara poesia.
É gratificante testemunhar o reencontro de um grande cineasta com seu melhor cinema, após alguns trabalhos menos interessantes ou mesmo, decepcionantes. Eduardo Coutinho mostra que, como poucos, conhece o "segredo do polichinelo", sendo capaz de reinventar seu próprio cinema, quando muitos ( eu, inclusive ) consideravam-no exaurido. Aos 74 anos, o mestre faz um filme cheio de frescor, de vitalidade, de um humanismo contagiante e necessário, nestes tempos de cinismo e desencanto, profunda e verdadeiramente moderno. Perto de Jogo de Cena, os ditos filmes "moderninhos" parecem rançosos, natimortos.

Um grande filme. Imperdível. Mais: imprescindível.

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