segunda-feira, 24 de dezembro de 2007

coisas que eu gosto (de ver ) 5 - Especial de Natal



Johnny vai à guerra, de Dalton Trumbo, 1971.



Já que estamos nesse lufa-lufa de Natal, pensei em comentar este filme, que tem tudo a ver com "o espírito natalino". Único filme do grande roteirista americano Dalton Trumbo ( só clássicos, como Spartacus, Pappillon, The Fixer, A Guy named Joe- refilmado por Spielberg como Além da Eternidade-, Exôdus, O último pôr do sol, A princesa e o plebeu, etc ), ganhador de 2 oscars como roteirista ( que, entretanto, foi impedido de receber ), baseado em seu romance, de mesmo nome.

Trumbo foi uma das vítimas do macartismo, tendo sido proibido de trabalhar no cinema, isso quando estava no auge da sua carreira como roteirista. Ele foi um dos "dez de Hollywood", cineastas que, ao serem confrontados pela sanha anti-comunista oportunista do medíocre senador Eugene McCarty, alegando a 1a Emenda da constituição americana, se recusaram a testemunhar no Comissão de assuntos anti-americanos - uma espécie de CPI do mensalão local, formada por uma laia que muito se assemelha à turba de tucanos, pefelistas e heloísas helenas assanhados travestidos de moralistas e patriotas, mas que buscavam apenas aparecer na tv e angariar votos ( tal como cá ). Testemunhar na CPI, digo, na comissão era um eufemismo para delatar possiveis comunistas ou simpatizantes. Muitos fizeram isso. O grande cineasta Elia Kazan, entre eles. Para salvar a pele, muitos entregavam qualquer um. Havia até uma lista com os nomes manjados que a comissão oferecia aos depoentes. O que importava era, como em qualquer processo inquisitório, que as vítimas capitulassem, e abdicassem de sua dignidade através do processo mais torpe: a delação, a traição. Nada mais prazeroso ao algoz do que transformar suas vítimas em algozes de novas vítimas. É a legitimação da opressão.


Os "dez de Hollywood" se recusaram a fazer qualquer delação e caíram em desgraça. Foram presos, depois colocados na "lista negra", proibidos de trabalhar em qualquer atividade da indústria cinematográfica.

Abrindo um parenteses: Junto com Trumbo estava John Howard Lawson, também roteirista e, pelo que penso, talvez o único que fosse realmente comunista no grupo. Lawson era ativista dos direitos civis, foi criador e presidente da WGA ( Writers Guild of America, o sindicato dos roteiristas, o mesmo que hoje está deixando os executivos de Hollywood de cabelos em pé, com essa greve histórica que já dura tres meses... ), escreveu o roteiro de "Bloqueio", um filme que defendia os republicanos espanhóis contra as forças fascistas de Franco, visitou a antiga União Soviética diversas vezes, era sem dúvida um militante de esquerda. Lawson terminaria sua vida dando aulas, escrevendo um excelente livro sobre dramaturgia chamado O processo da criação cinematográfica, que recomendo a quem quiser entender um pouco de roteiro e de direção. Os demais, como Trumbo, eram apenas humanistas, progressistas, coisa que na América equivale a ser "vermelho". Ainda mais nos anos cinzentos da guerra fria. Ou, nos dias atuais, da doutrina Bush.

Seja como for, comunistas, esquerdistas, ou apenas simpatizantes, eles foram severamente punidos e perseguidos. Para poderem sobreviver, já que estavam na lista negra, e nenhum estúdio lhes dava trabalho, foram obrigados a escrever sob pseudônimos, ou, mesmo arrumar "testas de ferro" que assinassem seus trabalhos. Há um belo filme de Martin Ritt, Testa de Ferro por acaso, com Woody Allen, que retrata de forma pungente essa página vergonhosa da história americana recente.

Trumbo passou anos escrevendo com pseudônimos ou através de amigos que lhe emprestavam o nome. Os dois Oscars que recebeu foram entregues aos seus testas-de-ferro, só sendo devidamente creditado como o verdadeiro premiado e recebido as estatuetas carecas nos anos setenta ( só um, o outro lhe foi "entregue" postumamente, pois morreu em 1976).



Sua reabilitação se deve em muito a Kirk Douglas, que bancou toda sua reputação de grande ator para incluir o nome de Trumbo nos créditos de roteiro de Spartacus.


Trumbo escreveu o romance Johnny got his gun em 1938, já prevendo os horrores da 2a guerra mundial que se aproximava. O romance, como o filme, conta a história de um jovem idealista que se alista para lutar no exército americano durante a primeira guerra mundial. Atingido por uma bomba, perde os braços, as pernas, tem o rosto destruído, ficando cego, surdo e mudo. Todo o romance se passa na mente de Johnny que, apesar de tudo, se mantém intacta e ativa. A narrativa é mesclada pelas sensações vividas pelo "pedaço de carne viva" e seus sonhos, lembranças, devaneios, que se misturam à realidade de tal forma, que aos poucos, vamos perdendo a noção do que é real ou imaginário. Levando em conta a capacidade inesgotável de fazer o mal do ser humano, com suas armas, suas guerras, com a frieza dos cientistas, o oportunismo dos políticos, a mentalidade tacanha e autoritária dos militares, a ganância desenfreada dos capitalistas ( os únicos que ganham com as guerras, seja qual forem elas ), qualquer pesadelo parece insignificante diante da realidade. Neste sentido, o livro tem uma perspectiva de humor negro, apropriada para quem deseja denunciar a hipocrisia dos sentimentos patrióticos. Totalmente despojado de qualquer membro ou sentido que o faça interagir com os outros homens, aquele "pedaço de carne viva" é o único ser humano em toda a história.

Trumbo sempre quis transformar seu livro num filme, apesar de a princípio, a história oferecer pouca ou quase nenhuma perspectiva cinematográfica - pelo menos, para um filme narrativo.

Diversas vezes provoquei meus alunos nas aulas de roteiro, oferecendo este desafio: como fazer um filme onde o personagem não fala, não vê, não escuta, não tem rosto, não tem braços, nem pernas ( porém, tem sexo - isso é um detalhe fundamental. "Quando sentem a aproximação de uma bomba, instintivamente os soldados se colocam em posição fetal, protegendo seu sexo¨, diz um dos médicos-militares que "cuida" de Johnny ). Diante dessa provocação, a maioria dos alunos acaba desistindo do desafio, por considerá-lo insolúvel. Ao que eu respondo: mas ele pode pensar. E o pensamento é talvez a matéria mais cinematográfica existente.


E é assim que Trumbo consegue fazer sua narrativa fluir - através de dois planos, a realidade, onde um cotoco humano coberto por uma tenda deitado numa padiola num quarto vazio e escuro, imagem apavorante, e o imaginário, o mundo interior de Johnny. Através da representação dos pensamentos, sonhos, delírios do rapaz deformado, o filme respira, se realiza plenamente.

Trumbo penou para realizar o filme. Primeiro, pelas questões referentes à lista negra. Depois, pela aparente inviabilidade do projeto. Nenhum estúdio quis arriscar um centavo num filme no qual 50% ou mais da história se passava num quarto escuro, onde um "pedaço de carne viva" tecia comentários em voice-over. Trumbo resolveu ele próprio produzir o filme, usando seus proprios recursos. Num primeiro instante, pensou em entregar o projeto a Buñuel. Se havia alguém capaz de contar aquela história, esse alguém era Buñuel. Porém, problemas de orçamento e cronograma impediram o gênio espanhol de fazer o filme. Buñuel aconselhou Trumbo a dirigir ele mesmo o filme.

O filme é mais soturno que o romance, ainda que, aqui e ali, haja espaço para algum humor - nigérrimo. O tom mais pesado e totalmente pessimista deve-se ao fato de que muita água - e principalmente, muito sangue - correu, desde que ele escrevera o romance, até o momento em que conseguiu levá-lo às telas. Se as atrocidades vivenciadas por Trumbo na primeira guerra mundial forneceram horror suficiente para escrever seu romance, ele agora tinha não somente as experiências da 2a guerra mundial, muito mais cruenta e violenta que a primeira, bem como todo o processo de desumanização vivido pelo mundo, com a revelação dos horrores nazistas, dos campos de concentração, da bomba atômica, da descoberta do terror stalinista ( que foi uma ducha de água fria para aqueles que, como Trumbo, acreditavam num "outro lado" diferente e oposto ao mundo ocidental e capitalista ), a perseguição macartista, a guerra fria e, mais diretamente, à guerra do Vietnã, em pleno curso quando Trumbo finalmente consegue viabilizar o filme.

Estéticamente, o filme é dividido em dois planos, realidade e sonho. As cenas do "cotoco humano" são primorosas, filmadas em preto e branco com tons expressionistas ( a cena que abre o filme, com os médicos filmados de baixo pra cima, numa grande angular, eles usando máscaras de cirurgia, num preto e branco totalmente contrastado parece saída de um filme de Robert Wiene ou Lang, do cinema expressionista alemão, é impressionante ). Já as cenas "mentais" de Johnny, suas lembranças, seus sonhos, são todas num colorido que começa em tons pastéis e vai acumulando cores, num tom mais surrealista. Não só a fotografia cria a aura onírica, mas a própria interpretação, progressivamente rompendo com o realismo, e o espetacular uso do som, sempre exagerado, com pontuações que muitas vezes seguem o sentido dramático oposto ao da cena. O silvo da bomba que irá atingir Johnny é usado repetidamente, criando uma sensação incômoda - é através da aproximação da bomba que a ação retorna à realidade.

A narrativa aposta na perda progressiva da sensação de realidade, e aos poucos perdemos a noção do que é lembrança, do que é sonho, do que é delírio, os elementos vão se misturando de tal forma que o que vemos é muitas vezes confuso, estranho, perturbador.

Num dos sonhos, Johnny encontra-se com Jesus, interpretado de forma extraordinária por Donald Shuterland, não à toa, um dos atores mais identificados com a contra-cultura naquele momento. Recém saído do anarquico M.A.S.H., de Altman, Shuterland faz um Cristo cínico, engraçado, demasiadamente humano. Um Cristo que, impotente diante da desumanidade dos homens, aceita seu papel de "coveiro" da humanidade. Há uma cena muito boa, em que Jesus e Johnny discutem os limites de deus, diante das ações dos homens ( foram os homens que fizeram Johnny ser o que é ), na oficina de carpintaria de Cristo. O trabalho de Jesus é justamente fazer as cruzes que irão enfeitar os cemitérios.

Neste sentido, há um evidente sentimento de cristandade perdida e ressentida no filme. O filme usa e abusa de elementos cristãos, além do próprio Cristo, para mostrar a inviabilidade da proposta cristã ( estendendo-se aí para qualquer outra religião ) em resolver os problemas do mundo. É impossível acreditar em Deus neste mundo. Lembrando a famosa frase de Dostoiévski em "Irmãos Karamazov", "se deus não existe, tudo é permitido", Trumbo parece afirmar, não sem tristeza ou desencanto, que a impossibilidade da existência divina levou o homem a uma permissividade sem limites em relação à sua própria humanidade. "Tudo é permitido": o horror, o horror, como anos depois balbuciaria Marlon Brando, em "Apocalipse Now"(sobre esse filme falarei depois).

(atenção: a partir daqui falo sobre o desfecho do filme. Quem preferir ver o filme antes de saber como ele termina, é bom parar por aqui. )

Ao final, desiludido, Johnny, que consegue finalmente se comunicar com os demais, através de código morse ( batendo a cabeça contra a cabeceira da cama, repetidamente, a frase S.O.S ), pede para ser exibido num show de circo de horrores, pois seria a unica forma de poder conviver com os demais mortais. Diante da recusa ( algo jocosa ) dos médicos e militares, Johnny pede para ser morto. É o climax do filme, que o projeta à condição das obras-primas: os militares recusam a matar o doente, afinal, seria um crime. Há um diálogo esplendoroso entre o general e o capelão, que assistem aos pedidos de Johnny pela morte. O general cobra do padre que diga alguma coisa "confortadora" que faça o "pedaço de carne viva" desistir de sua vontade de morrer. E o padre retruca que não é capaz de pensar nada reconfortante, diante da desgraça que aflige o pobre Johnny. O general, irritado, diz que o trabalho dos padres é esse, reconfortar os desesperados. Ao que o capelão responde: "foi o seu trabalho que fez ele ficar assim, não o meu."

Belo diálogo.
Ao final, um soco no estômago que derruba até o mais insensível dos homens: o que parecia ser uma redenção ( o fato de Johnny conseguir se comunicar com os demais, e finalmente conseguir se socializar, provar que está vivo ), revela-se o pior dos pesadelos. Johnny não quer viver, mas os militares não o deixam morrer. É sedado, mantido confinado em seu quarto, sabe-se lá por quanto tempo mais. É condenado à vida, àquela vida vegetativa, pois os mesmos generais que massacram milhares de homens nas guerras hipocritamente são contrários à eutanásia - cabe somente a deus tirar a vida.

O final do filme é doloroso ao extremo. Sozinho em seu quarto (prisão), dopado, incomunicável, Johnny repete exaustivamente a mensagem de S.O.S, batendo sua cabeça contra a cama, sem obter resposta ou socorro. É um plano longo, um zoom-out, vamos nos afastando daquele pedaço de homem que está condenado a viver, por muitos e muitos anos ( afinal, Johnny é apenas um jovem de 20 poucos anos, e afora não ter braços, pernas, olhos, boca, rosto, ironia das ironias, goza de excelente saúde ). A imagem vai escurecendo lentamante, enquanto escutamos a batida solene de um tambor, um surdo, marcando o compasso do luto. Arrepiante.

O filme não é perfeito. Há algumas irregularidades, principalmente nas cenas surrealistas. Algumas são bem fracas, e apelam para um efeito fotográfico meio ultrapassado, que é o uso do filtro "flood", para criar uma aura de evanescência. Trumbo usa esse efeito em duas cenas: numa em que mostra uma missa, onde o padre diz que "deus está do nosso lado", abençoando os soldados que irão morrer pela pátria e numa outra, na festa de Natal na padaria onde Johnny trabalhava antes de se alistar. Essa cena, aliás, é a mais excessiva do filme, no sentido de concentrar quase todos os elementos de "exagero" típico de "cenas de sonho". Além do filtro flood, há marcas excessivamente teatrais, como a do dono da padaria que, paramentado como um estereótipo do capitalista, faz o brinde que une a todos, patrão e empregados, pátria e jovens que irão entregar suas vidas numa guerra sem sentido nem retorno, repetindo, ad nausean, ao longo da cena, a frase: "I´m a boss, this is a champagne, Merry Christmas".

Particularmente, é o momento menos feliz do filme, que ademais, mereceu de Buñuel a seguinte crítica: "um filme sensível e tocante, que se ressente de alguns sonhos filmados de forma muito burocrática". A crítica de Buñuel é pertinente.

Mas é na parte "real" (ou, a do pesadelo? ) que o filme logra melhores resultados.

Não à toa, ganhou o Prêmio Especial do Festival de Cannes, em 1971, mais o prêmio FIPRESCI.

O filme conta com um elenco afiado: Timothy Bottons interpreta Johnny, Jason Robards faz seu pai ( que ator magistral é Robards, ele se impõe em todas as cenas que aparece), o já citado Shuterland interpreta o divertido e cético Cristo. Além destes, há uma série de bons atores coadjuvantes, com particular destaque à Sandy Wyeth, que faz a prostituta ruiva Lucky ( Sandy era uma beldade nos anos 70, tendo filmado Easy Ryder ). O próprio Trumbo atua no filme, justamente na desastrosa cena do "i´m a boss, this a champagne, Merry Christmas", no papel do capitalista empostado ( a informação é do IMDB, geralmente é confiável ).

Taí uma bela forma de curtir a tarde sonolenta de 25 de dezembro, regurgitando o peru da véspera e de ressaca pelo vinho da ceia. Reúna toda a família e passe Johnny vai à guerra. Vai ser uma experiência inesquecível. Um filme propício para esse momento de confraternização, de solidariedade, de caridade, de respeito, amor e paz entre os homens de boa vontade.

Mas recomendo um anti-ácido àqueles que tenham a sensibilidade ainda não totalmente obliterada.

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