quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

Coisas que eu gosto ( de ver ) 6:


Violento e Profano, de Gary Oldman (1998)


Filmaço do grande ator inglês, confessadamente baseado em sua juventude, é um drama proletário mostrando as entranhas da Inglaterra pós-Margareth Tatcher, com seus ex-operários desempregados, vivendo de biscates, seguro social, decaíndo na beberragem, na pequena contravenção, nas drogas.
Esse tema já havia rendido outro grande filme britânico realizado quase na mesma época, Ou tudo ou nada ( Full monty, de Peter Cattaneo ), que pelo viés da comédia mostrava como a antiga e poderosa classe operária inglesa foi ferida de morte pela política neo-liberal de Tatcher. Mas no filme de Oldman não há refresco.
É porrada, é cusparada, é um niilismo constante.

Oldman é um artista que conviveu com o movimento punk, e cronológicamente, sua adolescência deve ter ocorrido no momento em que aquele movimento eclodiu. Não custa lembrar que Oldman interpretou nada mais nada menos do que Sid Vicious, o mais auto-destrutivo dos ícones do punk, no visceral Sid&Nancy, de Alex Cox.

Aos 18 ou vinte anos naquela época, Oldman testemunhou ou conviveu com os anseios daquela juventude marcada pelo desencanto, uma juventude "sem futuro", portanto frustrada, furiosa, que revidou os dissabores da vida na música brutal que teria entre os epígonos as bandas Sex Pistols e, mais sofisticada e politizada, o The Clash.

Mas, inteligentemente, Oldman ( que escreveu o roteiro) optou por não "datar" seu filme. Ao transferir aquele que seria o relato mais ou menos autobiográfico de sua juventude dos anos setenta para o final do século XX, Oldman radicalizou a sensação de perda e de desencanto que marcou seu olhar de jovem num momento ainda mais acentuadamente crítico da sociedade inglesa - pelo menos, para a banda pobre da sociedade inglesa. Neste sentido, os personagens adultos de Violento e Profano são os remanescentes do movimento punk, destituídos de piercings e cabelos moicanos descoloridos, já quarentões e com a barriga proeminente e pais de familia. Mas igualmente desiludidos, desorientados, perdidos, frustrados, furiosos. São o que os garotos "no future" viraram.

Não há exatamente uma trama. Se quisermos definir um gênero ou subgênero que enquadre o belo filme de Oldman, ele é um drama familiar por excelência. Mostra uma família desajustada: marido desempregado e envolvido com trambiques e pequenos delitos, sua esposa feiosa com alguns (muitos) quilos acima do peso, e o cunhado mais jovem, tratado como filho pelo casal. A ação se concentra em Raymond, o marido, bruto, irrascível, descontrolado ( numa atuação memorável do grande ator inglês Ray Winstone ), que parece uma força da natureza, uma tempestade, um furacão, um terremoto, totalmente irrefreável e como numa calamidade, arrastando tudo e todos consigo na sua jornada auto-destrutiva. Em contraponto à Ray, se colocando no meio de seu caminho arrasador, está Billy, o jovem cunhado. Em resposta a violência de Ray e à sua própria falta de perspectivas, Billy se droga. Podemos dizer que o conflito do filme é basicamente o confronto, não necessariamente físico (mas sempre violento) dos dois, Ray e Billy, mas de suas formas de enfrentamento da sua nulidade social. Enquanto Ray agride o mundo que o rejeita, Billy se droga como forma de negar esse mesmo mundo e recusa. No meio dos dois, se ergue com uma força dramática digna das grandes personagens trágicas, a esposa e irmã, Val ( numa atuação explendorosa de Kathy Burke, premiada como melhor atriz em Cannes ). Obviamente, ela recebe a sua cota de catiripapos do marido. Ela aguenta estoicamente a boçalidade e mesmo, as porradas, do marido a quem ama e de quem está grávida mas num determinado momento, cansada daquela vida sem esperanças, ela abandona Ray.
Neste momento, o filme torna-se uma estranha, bruta, mas não menos comovente história de amor. As tentativas de Ray reconquistar a mulher é tocante. Começa bruta, reação natural de macho violento abandonado. Ele não admite ser abandonado pela mulher - pela sua mulher. As primeiras abordagens de Ray tentando reaver sua esposa parecem mais uma crônica das páginas policiais do que uma narrativa amorosa.
Mas a percepção de que perdeu menos "uma propriedade" ( talvez a única que sente sua, já que os empregos foram evaporados pela política neo-liberal, o apartamento no conjunto residencial está com a hipoteca vencida, seus lucros com seus pequenos golpes e sujeiras se esvaem numa velocidade maior do que a capacidade de obtê-los ) e sim a mulher que estranhamente ama e que está grávida de um filho seu, irá amainar a fúria e substituí-la por uma dor profunda e sem paliativos. É através da solidão e da melancolia que Ray irá se descobrir, mas obviamente essa não é uma descoberta agradável.
Ao final de duas horas e dez minutos há uma espécie de reconciliação ( que Oldman deixa bem claro que não será a primeira nem a última das muitas separações e reconciliações daquele casal que se ama ao seu modo ), um rápido fragmento de oxigênio ao afogado que se debate entre as ondas, um vislumbre de sol no céu cinzento que parece emoldurar o igualmente cinzento e frio conjunto habitacional em que vivem os personagens, uma breve e frágil esperança que mais parece um espasmo de um doente terminal.

A metáfora é forte, mas é a que talvez melhor traduza o filme de Oldman. Ela me veio à mente a partir da lembrança de uma das mais belas cenas do filme, um longo e dolorido monólogo de Ray, no qual ele fala da lembrança de seu pai, com quem nunca trocara um abraço, um beijo, uma palavra de carinho, nada. O velho era tão ou mais desregrado do que Ray. Ele conta que um dia em que fora visitá-lo num hospital, e lá está o velho ( que fora destruido pela "fucking vodka" ), todo entubado, respirando por aparelhos, num estado de petição de miséria. Eles perguntam ao velho se ele quer algo. O pai faz um gesto, meio de deboche, mostrando a boca, murmura algo que o então garoto Ray não compreende. E a mãe explica que ele chegara a um estágio em que não podia ingerir nada que fosse sólido, nada pela boca ( "nil by mouth", daí o título em inglês ). Depois Ray explica que o pai ainda viveria mais dez anos, até morrer sentado na sua fucking cadeira de balanço, no meio da sala. A lembrança desse encontro com o pai é a epifania de Ray.
Mas esta epifania, dolente, suja, embalada a uísque vagabundo e anfetaminas, não chega a ser uma "redenção" tampouco uma transformação. Ainda que haja a epifania, não há catarse na narrativa de Oldman.
Embalado por uma bela e melancólica trilha sonora de Eric Clapton, por uma fotografia puxada ao azul espetacular, pelas interpretações viscerias de Ray Winstone e Kathy Burke, pela exímia direção de Oldman, Violento e profano é um filme que recomendo. Agora, um aviso: é muito dificil conseguir achar o filme. Lamentavelmente, ele não foi lançado em dvd ( nem lá fora ) e as poucas cópias em VHS se tornaram uma espécie de Santo Graal para quem admira o bom cinema. Eu mesmo há anos tento achar o filme. Tinha uma cópia na locadora do Estação Botafogo, aqui no Rio, mas parece que algum malandro roubou-a ( antes de mim, sou forçado a escrever... )

Um ex-aluno meu, Maldonado, conseguiu baixá-lo pelo E-mule, mas até hoje não me deu a cópia. Devia tê-lo chantageado, só lhe dado nota contra entrega da bendita cópia do filme. Mas eu o aprovei, e o malandro sumiu levando o filme com ele.
Eu o amaldiçoo-o entredentes todos os dias, antes de dormir.

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