sábado, 19 de janeiro de 2008

Quem são nossos ídolos? - a lista (5)

Um nome que deve ser sempre levado em consideração quando pensarmos nos nossos roteiros e cujo trabalho será sempre inspirador é o norte-americano Paul Schrader.
Este incrível diretor e roteirista ( ao centro, na foto, ao lado de seu irmão, também roteirista, Leonard, de bigode ) é um personagem fascinante: até os 18 anos de idade, nunca tinha posto os pés num cinema ou sequer visto um filme ( o primeiro que viu foi "Anatomia de um crime", de Otto Premminger, que certamente deve ter sido sua epifania, se bem que Schrader cita como suas referências o escritor Dostoievski e o cineasta francês Robert Bresson).

Oriundo de uma família calvinista, criado dentro dos mais rigorosos padrões da ética cristã, moralista, após sair de casa justamente para estudar cinema ( na UCLA e depois na Columbia University, em Nova York), caiu na gandaia, vivendo anos no bas-fond nova-iorquino, levando uma vida desregrada, em meio à drogas, prostituição, etc. Sua obra é fundamenta marcada por essa dicotomia: rigidez dos valores morais, religiosos e familiares em detrimento com os desejos mais carnais, obscuros e pecaminosos, resultando numa crise moral e numa culpa invariavelmente redimidas pelo sacrifício (puro Dostoievski). Não seria exagero dizer que o cinema de de Paul Schrader parece uma incursão ao círculo mais profundo do inferno. Tanto como diretor quanto como roteirista, seu trabalho é impregnado de violência, sexo, loucura, ganância, vícios - é como se ele escrevesse e filmasse da mesma forma como Hyeronimus Bosch pintava seus quadros.

O mal está presente, material, totalizante, envolvendo a ação dos homens, como se fossemos não criados à imagem de Deus, mas à do próprio capeta.

Basta pegarmos dois de seus principais roteiros: Taxi Driver e Touro Indomável, ambos com o diretor Martin Scorsese, de quem Schrader foi parceiro durante muito tempo. Em ambos vemos personagens transitando numa espécie de limbo moral, na fronteira tênue da loucura e da sanidade, homens que progressiva e conscientemente se transformam em monstros.


Aliás, esta metamorfose de homens em bestas, que poderíamos considerar a premissa básica de seu trabalho, seria trabalhada de forma explícita num dos primeiros filmes de Schrader como diretor, A Marca da Pantera, refilmagem mais sexista e violenta de "Sangue da Pantera", um clássico do cinema B de Jacques Tourneur , onde a bela Natassja Kinski sofre de uma maldição que a transforma literalmente numa pantera.


Os filmes que Schrader escreveu revelam uma predileção pelo tema da tentação e consequentemente perdição, fruto óbvio de sua formação religiosa rígida e pelos anos de "perdição" pós-universidade.

Isto está presente, em maior ou menor intensidade, nos seus trabalhos com Scorcese como "A última tentação de Cristo" e mais recentemente, "Vivendo no Limite" ( um Scorsese meio subestimado, em detrimento das muitas porcarias que anda fazendo nos últimos tempos, como Kundum, Gangues de Nova York, O aviador e principalmente Os infiltrados, este um clone vergonhoso e descarado, copiado quase fotograma a fotograma de um filmeco homônimo de Hong-Kong, com o qual ganhou seu tão desesperadamente desejado Oscar ).

Além da parceria com Scorsese, Schrader escreveu também "Trágica Obsessão", um bom de Brian de Palma pouco conhecido ou lembrado, "Operação Yakuza", de Sidney Pollack, "A outra face da violência", de John Flynn ( um dos filmes prediletos de Quentin Tarantino e,possivelmente, do qual ele mais copia, ops, cita em suas "originais" produções ), escreveu um dos tratamentos de "Contatos Imediatos de Terceiro Grau", de Spielberg ( recusado pelo diretor por conta do acentuado viés religioso que Schrader imprimiu à trama ), "A costa do Mosquito", talvez o melhor filme de Peter Weir, com atuações magníficas e surpreendentes de Harrison Ford, Helen Mirren e do precocemente falecido River Phoenix, e "Cith Hall - bastidores do poder", de Harold Becker, com Al Pacino e John Cusak.

Como diretor, sua obra não é menos interessante e instigante: desde "Vivendo na corda bamba" (Blue Collar), seu primeiro filme, uma espécie de triller com pinceladas de drama proletário, com Richard Pryor, Harvey Keitel, Yaphet Kotto, passando pelos mega-sucessos "Gigolô Americano" ( que consolidou a carreira de Richard Gere como sexy simbol ) e o já mencionado "A Marca da Pantera". Menos conhecido que esses mas profundamente pertubador é "Hard-Core, o submundo do sexo", que narra a desesperada jornada de um pastor protestante (interpretado por George C. Scoth ) pelo submundo de prostituição, drogas, cinema pornô, sadomasoquismo e snuff movies ( aqueles filmes que mostram estupros, violências sexuais e físicas e mesmo mortes, ao vivo, supostamente reais, sem truques), em busca de sua filha desaparecida.

Em 1984, Schrader viria a realizar um dos mais inteligentes filmes da década, e com certeza seu melhor filme, Mishima - uma vida em quatro tempos, baseado na vida e obra do escritor japonês Yukio Mishima, em que mais uma vez a premissa da transformação de homem em monstro está presente, além dos temas recorrentes rigidez moral, vida pecaminosa, redenção e sacrifício. Mishima, escritor sensível e homossexual atormentado com sua própria sexualidade, acaba superando os preconceitos e a rejeição, transformando-se de homem franzino num musculoso "samurai", moldado em academias de malhação e adotando uma ideologia militarizada e fascistizante, em detrimento aos seus primeiros anos de esquerdista, formando uma espécie de milícia cujo objetivo era resgatar a glória do Japão pré-guerra mundial e que acabou praticando haraquiri após um fracassado ataque ao parlamento japonês. É um belo, forte e mágico filme, com um roteiro ousado e moderno, cheio de flash-backs e alternando a vida real de Mishima com a encenação de trechos de suas obras, um verdadeiro mosaico narrativo, com a(s) história(s) sendo contada(s) em camadas alternadas, paralelas, em diferentes perspectivas.

Ainda nos anos 80, seu período mais inspirado como diretor, Schrader faria o provocador "O Sequestro de Patty Hearst", que registra a transformação da herdeira do magnata da imprensa Willian Hearst ( em quem Orson Welles se inspirou para criar seu Cidadão Kane ) em guerrilheira e assaltante de bancos, sob o comando do Exército Simbionês de Libertação, justamente por quem fora sequestrada ( mais uma vez presente a temática da transformação de homem em fera ).
O roteiro, de Nicholas Kazan ( filho do grande cineasta Elia Kazan ), da mesma forma que "Mishima" trabalha com uma interessante estrutura narrativa, contando a história em diversos planos e tempos alternados, paralelos.
É um bom roteiro para ser estudado. Pena que o filme não tenha sido lançado ainda em DVD, e as cópias em VHS são muito dificeis de se achar ( mas procurem).


É neste período que realiza também o ótimo "O dono da noite", história de um traficante viciado em heroína, que é um angustiante mergulho no mundo das drogas. Schrader considera este seu melhor filme. É um filme sufocante, neurótico, com interpretações eletrizantes de Willen Dafoe e Susan Sarandon. Altamente recomendado, nesses tempos de "Meu nome não é Johnny".

Dá para supor pela temática, tanto do roteirista quanto do diretor, que Schrader busca de certa forma fazer uma catarse, uma expiação. Deve ser uma figura atormentada.

Dos anos 90 para cá, mais especificamente desde "Estranha passagem em Veneza" ( um filme estranho, protagonizado pelo não menos estranho Christopher Walken, com roteiro de Harold Pinter), sua obra parece entrar em declínio, dirigindo mais do que escrevendo, mas com uma produção menos interessante e bem menos autoral, fazendo filmes de qualidade duvidosa, como a 'prequel' do clássico do terror, "O exorcista", "Exorcista: o começo", ainda que sempre transitando no lodaçal temático que caracteriza sua obra.

Recentemente, parece ter retomado as rédeas da própria carreira, realizando filmes interessantes "Temporada de caça" ( que concorreu a vários Oscars, ganhando o de melhor coadjuvante para James Corburn ) e, principalmente, em "Auto-focus", cinebiografia do ator Bob Crane, famoso pelo seriado cômico Guerra, Sombra e Água Fresca, deliciosa sátira aos campos de concentração ( inspirado em "Inferno 17" de Billy Wilder que, por sua vez, era inspirado em "A Grande Ilusão", de Jean Renoir - de ambos falaremos mais tarde), que depois enveredou pela indústria de vídeos pornôs, filmando suas próprias experiências sexuais. Isso numa época em que o home video ainda era uma novidade, sendo um dos pioneiros (podemos chamá-lo assim ) da exploração do sexo para exibição privada e doméstica. Crane era viciado em sexo, levava uma vida dividida: em casa era excelente marido e pai de família, mas fora era um sátiro sedento por sexo, de preferência o mais pervertido. No final da vida, solitário, falido, fracassado, foi encontrado morto ( suicídio? assassinato? ) num quarto de um hotel vagabundo do Arizona. Temática e personagem típicos de Schrader.

A título de curiosidade, seu irmão Leonard, já falecido, também é roteirista, tendo trabalhado nos filmes do irmão ( Vivendo na corda bamba, Mishima, etc ) e também escrito o roteiro do grande sucesso de Hector Babenco, O Beijo da mulher aranha (em parceria não creditada com o nosso mestre Jorge Durán, de quem falaremos já, já ).

(Pelo espaço que dediquei ao Schrader, dá pra perceber que é um dos meus prediletos... )

Nenhum comentário: