terça-feira, 22 de janeiro de 2008

Quem são nossos ídolos? - a lista (6)

A atividade de roteiristas muitas vezes atrai pessoas de outras áreas da dramaturgia, especialmente, dramaturgos, romancistas, jornalistas. O fato de trabalharmos com texto e palavras ( sendo que nosso caso, unicamente como meio, e não como fim ) nos aproxima bastante dos demais ditos "profissionais da palavra". No mais, somos todos contadores de histórias, independente da mídia em que atuamos. Muitos dos grandes roteiristas contemporâneos, e mesmo, diretores de mão cheia, são egressos do teatro e da literatura.

Dos contemporâneos, talvez o mais notável seja o norte-americano David Mamet.

Consagrado autor e diretor de teatro, Mamet começou adaptando seus próprios textos para a tela, e como demonstrou grande talento para a coisa, passou a escrever diretamente para o cinema.


Dentre seus primeiros trabalhos, chama destaque a adaptação para cinema do romance noir de James M. Cain, "O destino bate a sua porta" ( que já havia sido adaptado algumas vezes antes, uma dirigida por Luchino Visconti, com o nome de Ossessione, em 1943 e outra, na década de 50, com a bomb-shell Lana Turner e John Garfield). Esta versão é famosa pela tórrida cena de amor na mesa, entre Jack Nicholson e a então estonteante Jessica Lange. O filme foi dirigido por Bob Rafelson, e fez grande sucesso.

Depois escreveu o drama de tribunal, O Veredicto, de Sidney Lumet, com Paul Newman e que lhe valeu sua primeira indicação ao Oscar como roteirista.


Mas talvez o grande trabalho de Mamet como roteirista seja Os Intocáveis, de Brian de Palma. O filme grandioso, tem um roteiro a àltura das elucubrações cinematográficas de de Palma, com suas famosas citações ( a cena do tiroteio na Estação de trem citando o Encouraçado Potemkin é brilhante ) e ao mesmo tempo, com rigor narrativo e dramatúrgico pouco visto nos demais filmes de de Palma ( sabidamente um cineasta que usa as tramas como pretexto para criar climas e exercícios estilísticos, num virtuosismo genial ). Partindo do antigo seriado de televisão de mesmo nome, que por sua vez, era inspirado na real força-tareda policial que botou Al Capone atrás das grades, Mamet habilmente soube dosar o protagonismo de Ness com seus companheiros, criando personagens diferentes, humanos, distintos, cada um a sua maneira possuindo um grande momento solo. Eliott Ness seria o idealista, puro e deslocado da realidade ( papel sob medida pro jeitão de bom moço de Kevin Costner ), Jim Malone ( brilhantemente interpretado por Sean Connery, justamente premiado com o Oscar de melhor ator coadjuvante ), o policial irlandês durão, que não reluta em meter a mão na podridão representaria o senso comum, que transforma em prática o que a teoria de Ness não consegue materializar, George Stone ( Andy Garcia), seria a juventude, com seu voluntarismo e alguma irresponsabilidade, cujo processo no final irá amadurecer e Oscar Wallace (interpretado pelo dublé de ator e escritor Charles Martin-Smith, autor de vários romances policiais, como O Assassinato na rua Gorki ) seria o homem comum, destituído de músculos, pontaria ou qualquer outro atributo especial, mas por isso mesmo, tão ou mais heróico quanto os demais. Mais que personagens, são arquétipos- mas não de heróis, e sim de homens, de gente como a gente ( pelo menos, como a gente americana).

Sem dúvida, Os intocáveis alavanca a carreira de Mamet como diretor, que começa com pequenos e inteligentes filmes como Jogo de Emoções e As coisas mudam. Sua carreira é alternada com roteiros que escreve para grandes estúdios e com os quais financia parte de seus filmes mais autorais, como "Olleana", adaptação de sua própria peça, e Homicídio.
Entre os roteiros que escreveu profissionalmente estão "Hoffa - o homem, a lenda", de Danny de Vito, "Ronin", de John Frankenheimer, "Mera Coincidência", de Barry Levinson ( nova indicação ao Oscar ). Mas mesmo um roteirista de talento como Mamet não conseguiu escapar do fiasco na adaptação da "bomba" Hannibal, sequência estúpida e desnecessária do grande triller de Jonathan Demme, O Silêncio dos Inocentes, produzida e dirigida pelo cada vez mais mão pesada Ridley Scoth. Estranhamente, este filme Mamet assinou, ao contrário de Ronin, onde utilizou um pseudônimo. Será que ele não considera o roteiro tão ruim? Nem a constrangedora sequência de Ray Liotta comendo os próprios miolos ( de um humor involuntário, parece até um pastiche de Tarantino ).

Mas talvez graças a essa sua derrapagem, conseguiu dinheiro para seguir produzindo seus próprios filmes, muito mais interessantes dos que, em geral, acaba sendo chamado para escrever profissionalmente ( já expliquei aqui que faço uma diferenciação entre o escrever para si, atividade a que chamo artística, ou autoral, se preferirem, e escrever profissionalmente, que é fazer roteiros para terceiros, sob contrato, ou para vender para algum produtor, coisa que não existe aqui no Brasil, mas que é bastante frequente nos EUA).
Alguns de seus textos teatrais foram levados para as telas, por outros diretores, como Sobre ontem à noite, adaptação de Perversidades sexuais de Chicago ( montada aqui no Brasil com Paulo Betti e José Mayer no elenco ), que fez grande sucesso nos anos 80, principalmente pelo público mais jovem, pois contava com dois jovens astros então em plena ascensão, o hoje sumido Rob Lowe e a ainda não siliconada Demi Moore.

Outra peça sua que foi filmada é "O sucesso a qualquer preço", talvez seu maior sucesso teatral, premiada com o Tony ( espécie de Oscar do teatro norte-americano), mas que foi filmada de forma burocrática por James Folley apesar do grande elenco que contava com Jack Lemmon, Al Pacino, Kevin Spacey, Ed Harris, Alan Arkin, só feras.
Também ganharam as telas os textos "American Buffalo" e recentemente, "De porta em porta ( Edmond)", que conta com uma incrível performance de um dos atores ícones de Mamet, o excelente Willian H. Macy.
Outros filmes de Mamet que merecem ser vistos e estudados: A trapaça, O cadete Winslow, Spartan, a comédia sobre o fazer filmes State & Main, estupidamente batizada no Brasil como "Deu a louca nos astros" ( há uma irritante preguiça mental nos distribuidores brasileiros, que vem abusando da expressão "deu a louca", roubada de uma velha comédia pastelão dos anos 60, "Deu a louca no mundo", para renomear os filmes, gerando uma enxurrada de comédias iniciadas como a já batida expressão, como "Deu a louca no chapeuzinho vermelho", "Deu a louca na cinderela", etc, não havendo nada em comum entre os filmes, além de serem comédias ) e principalmente, o triller O assalto, pouco badalado mas excelente exercício de Mamet no gênero do suspense ( mais especificamente, no subgênero 'filme de assalto', modalidade de filme de suspense iniciada com o Segredo das Jóias, de John Huston, e que tem como um dos paradigmas o Grande Golpe, de Kubrick ) contando com atuações espetaculares de Gene Hackman, Delroy Lindo, Danny de Vito, Sam Rockwell e pela senhora Mamet, a atriz Rebecca Pigeon.

No momento, Mamet dirige seu novo filme "RedBelt", que conta com a participação do Rodrigo Santoro e de Alice Braga.

Mamet escreveu um livro, Sobre dirigir filmes ( Ed. Civilização Brasileira), que é muito interessante e, apesar de tratar de questões basicamente voltadas para o exercício da direção, é uma leitura fundamental para quem pretende escrever filmes. Uma das vantagens de ser um grande diretor e um excelente roteirista é pensar o filme sempre como um processo que envolve inseparávelmente os dois momentos de criação. Altamente recomendado.
Outro nome que devemos ter em mente, e que é egresso do teatro, é o grande dramaturgo Paddy Chayefsky. Curiosamente, sua obra no cinema é relativamente pequena, uma vez que sua produção áudio-visual majoritariamente se concentraria na televisão americana, na qual trabalhou grande parte de sua vida.
Dividindo-se primeiramente entre a Brodway e telepeças gravadas ao vivo, nos primeiros anos da televisão, Chayefsky se notabilizou pela criação de tipos cheios de humanidades, pessoas comuns, tipos sem glamour, gente do povo, numa espécie de dramaturgia realista em voga nos EUA de pós-guerra ( não custa atentar que o cinema mundial como um todo estava de olhos voltados para o magnífico e revolucionário movimento neo-realista, em pleno apogeu, na Itália ).

Tanto que seu primeiro roteiro é uma adaptação para o cinema de uma telepeça sua, chamada Marty, que falava das agruras de um açougueiro italo-americano desajeitado e tímido, feio mesmo, solteirão que ainda vive com a mãe superprotetora, interpretado por Ernest Borgnine ( que merecidamente ganhou o Oscar de melhor ator ). Um personagem e uma temática que nada tinha a ver com o cinema americano até então.

Marty, um melodrama com algum humor, ainda que amargo, foi dirigido por Delbert Mann ( também oriundo da televisão, e que dirigiria outros dois roteiros de Paddy, Despedida de solteiro e Crepúsculo de uma paixão, com Kim Novak ), e Chayefsky foi premiado com o Oscar de melhor roteiro( Marty ganhou também o Oscar de melhor filme e também a Palma de Ouro em Cannes).

Aliás, a carreira de Paddy é marcada pelos Oscars. Em 1971, ganharia novamente o Oscar de melhor roteiro por Hospital, comédia de humor negro dirigida pelo seu amigo Arthur Hiller.

O terceiro viria com Rede de Intrigas. Dirigido Sidney Lumet, grande diretor americano também egresso da televisão, e parceiro de Paddy em diversas ocasiões, Rede de Intrigas é um dos melhores filmes americanos de todos os tempos. Ganhador de vários Oscars, além do já citado de melhor roteiro, é uma espécie de raio X amargurado e devastador das entranhas podres das grandes redes de televisão, e seria posteriormente muito imitado, tanto no cinema como em filmes como Nos bastidores da Notícia ( James L. Brooks ), Quarto Poder (Costa Gravas), ou em seriados como the 3rd rock, etc.
A trama é simples, porém genial: num surto de loucura, um veterano comentarista de tv às vésperas de ser demitido, faz um desabafo ao vivo, dizendo que vai se suicidar, o que provoca comoção nacional entre es expectadores e catapulta a audiência do canal. Então os executivos da emissora, ao invés de demití-lo transformam-no na grande atração do programa. Sua morte anunciada vai sendo devidamente adiada, a fim de manter a audiência do programa, para satisfação dos patrocinadores. O ensandecido comentarista torna-se uma espécie de pregador midiático, fazendo discursos iracundos contra o capitalismo, o consumismo, contra a propria TV: desliguem as televisões, vocifera ele, desliguem as televisões e vão às ruas gritar, protestar.

Mas obviamente chega o momento em que ele se torna descartável, pois como tudo em televisão, é efêmero e perde o interesse. Então só resta ao sujeito morrer. Um filmaço, inteligente, crítico, que conta com o brilho de um elenco afiadissimo: Willian Holden, Faye Dunaway, Robert Duval e Peter Finch, como o ensandecido messias televisivo.

O último trabalho de Chayefsky é o estranho Viagens Alucinantes, dirigido por Ken Russel, e estrelado por William Hurt no comecinho de carreira. Baseado num romance de sua autoria, Viagens Alucinantes em tese é um filme de ficção-científica, mas pode ser muito bem interpretado como uma crônica sobre os efeitos das drogas alucínogenas na mente humana. Aliás, é este o enfoque dado ao roteiro pelo diretor inglês Russel, outrora famoso por seus ensadecidos musicais como as óperas rock Tommy, Liztomania ou os barrocos Os demônios (refilmagem do clássico polonês, Madre Joana dos Anjos ) ou Delírio de Amor ( cinebiografia sobre Tchaikovski ) e que neste Viagens Alucinantes fez seu último filme interessante.

É um filme estranho. O conflito é quase metafísico, um cientista busca, através de experiencias bizarras, alcançar a essência do homem, primeiramente retrocedendo ao seu estágio animal, depois, mais profundamente, regredindo até ao nivel molecular, numa tentativa de chegar à alma, essência básica da humanidade.

Chayefsky não deve ter gostado muito do resultado ou do trabalho com Russel, pois assinou o filme com um pseudônimo: Sidney Aaron.

Mas é um filme que vale a pena ver.

(continua)

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