terça-feira, 10 de julho de 2007

coisas que eu gosto (de ler ) 2:


"(...) - Tenho meditado muito sobre Dostoievski ultimamente - disse eu. - Como é possível alguém escrever tão mal, tão incrivelmente mal, e ainda assim comunicar tanta emoção a quem o lê?

- Não creio que seja culpa da tradutora - respondeu Evan. - Constance Garnett nos dá um Tolstói bem legível.

- É verdade. Tentei ler Guerra e Paz não sei quantas vezes, até encontrar uma tradução de Constance.

- Há quem diga que ainda poderia ser melhor - disse Evan - e acredito que sim, embora não conheça russo, para opinar com segurança. Mas nós dois conhecemos muito bem esse negócio de traduções, e não há duvida de que ela trabalhou direito. É um romance fenomenal, talvez o melhor de todos os romances, penso eu. Tão bom que é possível relê-lo várias vezes.

- Exatamente. Mas ninguém consegue reler Dostoievski nesse ritmo. Numa de minhas férias em Schruns já havia lido todos os livros que levara e então descobri num canto o Crime e Castigo. Fiz força, mas foi impossível relê-lo. Passei a ler jornais austríacos e estudar alemão, até que fui salvo por algumas obras de Trollope, em edição Tauchnitz.

- Que deus abençoe as edições Tauchnitz - continuou Evan.

O uísque já perdera sua qualidade estimulante do início e agora, quando se lhe acrescentava um pouco de soda, era apenas uma bebida forte.

- Dostoievski era um merda, Hem - continuou Evan. - Os melhores heróis de sua literatura são os santos e uns merdas como ele. Não há dúvida de que conseguiu criar uns santos admiráveis. É pena que a gente não consiga reler seus livros.

- Tentarei de novo reler "Os Irmãos ( Karamazov )". Talvez a culpa seja minha.

- É claro que se consegue reler algumas partes. Uma boa parte, aliás. Mas logo começa a irritar-nos, apesar de sua qualidade"


Esse trecho do capítulo "Evan Shipman no Lilas", do livro "Paris é uma festa", de Ernest Hemingway ( em tradução de Ênio Silveira ) bem que merecia estar no tópico "não fui eu quem disse, mas... " mas preferi usá-lo para abrir o comentário sobre o Crime e Castigo. Primeiro livro que li de Dostoievski, quando tinha 15 anos. Foi uma experiência avassaladora ( talvez semelhante a que tive ao ler Grandes Sertões: Veredas, de Guimarães Rosa, mas este eu li depois dos 30 ). Todo o sentimento de humanidade, talvez o pior e o melhor do ser humano reunidos num único personagem, Raskolnikoff, descritos com uma fúria intensa e um amor de igual volume que pareciam provir de um escritor em pleno surto, meio alcoolizado, meio enlouquecido, ou ambos.

Discordo totalmente de Hemingway quando ele diz que Dostoievski "escrevia mal, incrivelmente mal", mas entendo seu estupor diante da verborrágica e atordoante escrita que parece brotar aos jorros, como cuspe, como vômito, como sangue de uma veia aberta.

Discordo também quando ele diz que é impossível reler Dostoievski - mas também em parte. Reli o Crime e Castigo aos 25 anos. A emoção permaneceu intacta nesses dez anos. Mas foi uma leitura mais acurada. Não dá pra ler como entretenimento. É uma literatura pesada, dura, as vezes confusa - parece mesmo que Dostoievski não revisou seus originais, mandou publicar diretamente aquilo que saiu de sua cabeça e passou pro papel. Talvez seja isso que incomode tanto o Hemingway, sabidamente um lapidador de frases, inimigo visceral dos adjetivos, seco e direto como um telegrama.
Dostoievski tinha fôlego de oceanos, e um ritmo desordenado como um mar revolto. Mas duvido que ele não burilasse seu texto. Era um escritor, e mesmo um escritor de segunda revisa e copidesca seus textos.
O que Hemingway não entendia - ou fingia não entender, afinal, para um jovem escritor de 25 anos, que era o Hemingway retratado nessas memórias, um jovem escritor que se considerava algo cabotinamente o "maior escritor do mundo", era estiloso marcar diferença com um dos maiores escritores de todos os tempos, dizendo que escrevia mal, "incrivelmente mal", enquanto ele, aos vinte e pouquinhos, já era o maior, etc... ao mesmo tempo, há uma visível pontinha de inveja e reverência explícita na constatação de que apesar de escrever "incrivelmente mal", Dostoievski comunicava tanta emoção aos seus leitores -, como eu dizia, o que Hemingway não entendia que o tom atabalhoado de Dostoievski era o seu estilo.
Como falar de demência, compulsão, vícios, culpa, paixões irrefreáveis, ódios e rancores irreprimíveis, fé absurda e ceticismo completo, sem que a forma reproduzisse tão perfeitamente o seu conteúdo? Dostoievski não era um fingidor, ele sentia real e tão desesperadamente a dor que seu texto reproduzia.

Crime e Castigo ( como os demais romances e mesmo contos de Dostoiveski ) não é uma leitura de entretenimento, é uma aula de sobrevivência. Descobrir novos e nem tão belos aspectos da condição humana. Se reconhecer naquilo que se tem de simultâneamente bom e pérfido. Um mergulho de cabeça e sem rede no mais profundo da alma humana. Não é a toa que muitos definem Dostoievski como um precursor da psicanálise. Eu diria que melhor do que perder seu tempo num divã ( ainda se usa isso?) de analista ( e muito mais barato ) é ler Crime e Castigo ou Irmãos Karamazov ou, principalmente, Notas do Subsolo - sobre esse, especialmente, falarei mais adiante, em outra postagem. Disse isso uma vez pra uma aluna minha, de 24 anos, 14 destes passados num consultório (???) de analista. Ela fez cara feia, ou ficou vermelha, não lembro. Mas espero que ela tenha -se não largado a análise - pelo menos comprado num sebo uma boa e velha edição do Crime e Castigo.

Da mesma forma que se considera Dostoievski um precursor da psicanálise, é também um "existencialista" antes do existencialismo. E Raskolnikoff, com todos os seus anseios, defeitos, cheio de soberba e rancor, capaz dos sentimentos paradoxalmente mais abjetos e sublimes, talvez seja um dos personagens mais modernos da literatura, com certeza há muito de Raskolnikoff nos personagens dos existencialistas, como também nos personagens da contra-cultura, nos escritos dos beatniks, em muito de Henry Miller, em quase tudo de Bukovski.

E se Raskolnikoff é o mais conflituado e perturbado(r) personagem já criado pela literatura ( ao lado de Édipo e Hamlet), o que dizer de Sônia, a jovem prostituta que é o caminho de sua redenção? É um dos mais belos personagens femininos de todos os tempos. Um anjo - um daqueles "santos admiráveis" a quem Hemingway, ou melhor, o seu amigo Evan Shipman se refere - mas um anjo torto, como aliás, quase todos personagens "bons" do escritor russo são: anjos tortos, anjos cheios de uma putrefata humanidade, anjos de asas carcomidas pela miséria, pela loucura, pela prostituição, porém com a doçura e a bondade que nos fazem suportar mais alguns anos nesse vale de lágrimas e trevas que é nossa trajetória errática na terra.

Crime e Castigo rendeu algumas adaptações para o cinema. Conheço uma versão fiel, um filme russo, lamentavelmente muito contido e portanto, muito aquém ao texto. Há algumas versões livres, a melhor delas Pickpocket, de Robert Bresson - a mais fiel em essência ao romance de Dostoievski, se bem que, em estilo, nada mais distante dos arroubos dostoievskianos que a "frieza" do cineasta francês, embora nenhum ator conseguiu chegar mais perto do olhar de brilho quase sempre doentio de Raskolnikoff do que Martin LaSelle, que interpretou (?) Michel e nada mais semelhante à Sonia do que o semblante de "santa" de Jeanne, interpretada(?) por Marika Green (sobre Pickpocket falarei outro dia) - e a mais fraca, Nina, de Heitor Dhalia ( se bem que exista alguma semelhança entre a estética digamos "neo-expressionista" do filme e o clima do livro )

Em suma - leitura mais do que obrigatória.

2 comentários:

Clarisse disse...

Bem, como boa pessimista que sou, Dostoievsky pra mim é sobretudo (e dolorosamente)reconhecer o que se tem de pérfido...Minha relação com a sua literatura dispensa o teu "simultaneamente".Recomendo então meu favorito(pretensão minha?), e quem sabe você não adere à minha teoria: Nietotchka Niezvanova.
Estraçalhador.Indispensável, no entanto.

Henrique Crespo disse...

Crime e Castigo substituindo o analista? Hum... sei não mas que crime e castigo são palavras que remetem a análise são. rsrsrs

uma vez me disseram que ler dostoievsky não era uma questão de gosto era de caráter. rsrs