terça-feira, 3 de julho de 2007

Coisas que eu gosto ( de ver ) 1 :




"M - O vampiro de Dusseldorf", filme de Fritz Lang de 1931.

Um dos maiores filmes de todos os tempos. Moldou uma estrutura narrativa e um visual que desembocaria, anos depois, no "cinema noir" americano.

Sêco, soturno, vigoroso, contando com a atuação hipnótica de Peter Lorre no papel do assassino de crianças Hans Beckert (inspirado no serial killer Peter Kuerten ), coadjuvado por bons atores como Otto Wernicke ( o inspetor Lohmann ) e Gustav Gründgens ( o chefe dos bandidos, Schränker ), com a fotografia "pós-expressionista" de Fritz Arno Wagner, com seu dramático jogo de claro e escuro, luz e sombras e a montagem ágil de Paul Falkenberg, e obviamente, um roteiro exemplar. Escrito pelo próprio Lang e sua esposa Thea von Harbou ( essa, nazista de carteirinha ) é uma aula de estrutura dramática, com seus cortes em falso raccords e montagem paralela de situações.

O som é um capítulo à parte. Há bastante e bons diálogos no filme, muitas vezes dele atravessando as cenas em off para, depois, retornar à boca dos personagens. Em muitas vezes há o falso raccord sonoro, um personagem começa uma frase numa cena e ela é concluída por outro personagem, numa outra cena.

Numa atitude moderna, o filme dispensa totalmente o uso de música, seja narrativa ou de "clima". A única música presente em todo o filme é um trecho de "Na grande sala do rei da Montanha", de Edvard Grieg, assobiado pelo personagem de Lorre - e através dele reconhecemos o assassino, que só aparece no filme aos 30 minutos de filme, já no segundo ato ( antes vemos apenas sua sombra ou à distância ) . O IMDB revela que Lang dublou o assobio de Lorre.

Creio que há duas versões do filme em circulação. A que vi na Cinemateca do Mam há décadas e que tenho em VHS ( da série Classicos do cinema, da Altaya, editora espanhola ) é muito superior à que circula em dvd no Brasil.

A versão em dvd possui pequenas cenas (além de alguns planos avulsos ) que não existiam na cópia do Mam nem no Vhs, e ao meu ver, prejudicam em muito o filme.

Uma cena é um close de Beckert se encarando no espelho, no primeiro ato do filme, enquanto um psiquiatra fala em off sobre a evidente doença mental do assassino de crianças. Lorre faz caretas e arregala seus olhos lugubres, contorce o rosto num esgar assustador, doentio. É uma breve cena, quase um plano, um insert nada sutil, e me parece ter sido eliminada da montagem oficial do filme, e ter sido incluída depois, na versão que foi utilizada para a confecção do dvd. Não combina em nada com o filme e parece desmontar a rigorosa construção da personagem do assassino, sempre presente porém invisível, só reconhecido pela melodia que assobia.
A outra cena que existe apenas no dvd é a cena de tribunal, na qual Frau Beckmann, a mãe de uma das meninas mortas pelo assassino, diz que parte da culpa é de todas as mães e os pais, que deviam zelar melhor por suas crianças. A cena é estranhamente filmada, parece um apêndice. Na versão do Mam e do vídeo, escutamos a voz sem identificação de Frau Beckmann falando a frase, sobre uma ponta preta, antes do crédito de Fim. Pode ser que seja um problema de cópia deteriorada, mas a verdade é que a cena em si parece inconclusa, postiça e, principalmente, desnecessária.
Não sou historiador de cinema, fico aqui à espera de algum comentário que explique a diferença entre as duas versões.
De qualquer forma, com ou sem essas duas cenas, é um filme magnífico, vigoroso e terrivelmente atual - a discussão sobre a pena de morte que ocupa boa parte do "julgamento" de Beckert parece refletir as mesmas incertezas pelas quais passamos hoje em dia.
Obrigatório.

Um comentário:

Henrique Crespo disse...

sobre filmes ou melhor sobre a arte em geral que ultrapassa o tempo, essa que fica para a posteridade, eu me pergunto o quanto dela foi criada para ser assim. quero dizer: a arte é uma espécie de retrato, reflexo, crônica de seu tempo. é curioso como algumas obras conseguem romper isso. por outro lado não vejo que essa característica seja condição sine qua non para uma grande obra de arte.