sábado, 7 de julho de 2007

Não fui eu quem disse, mas Sidney Lumet


"O desprezo com que os escritores têm sido tratados pelos estúdios ao longo dos anos é conhecido demais para ser analisado novamente aqui. Em sua maioria as histórias de horror são verdadeiras, como quando Sam Spiegel contava com dois autores trabalhando no mesmo filme em andares diferentes do Plaza Athenée, em Paris. Ou quando Herb Gardner e Paddy Chayefsky, que tinham escritórios contíguos na Sétima Avenida, 850, em Nova York, receberam um dia ofertas idênticas para reescreverem um mesmo roteiro. Ou o produtor era estúpido demais ou estava preocupado demais para perceber que os roteiros estavam sendo enviados para o mesmo endereço, um para a sala 625 e o outro para a sala 627. Os escritores datilografaram cartas idênticas, recusando a oferta.

Eu venho do teatro. Lá o trabalho do escritor é sagrado. Realizar a intenção do autor é o principal objetivo de toda a produção. A palavra "intenção" é usada no sentido de expressar o motivo de o autor ter escrito a peça. De fato, como determina o contrato do Dramatists Guild, o autor tem a palavra final em tudo - elenco, cenários, figurino, diretor - inclusive o direito de encerrar a peça antes de ela estrear se não está satisfeito com o que vê no palco. Sei de uma ocasião em que isso aconteceu. Fui criado com o conceito de que a pessoa que teve a idéia inicial, que passou pela angustia de colocá-la no papel, era quem tinha que estar satisfeita.

Quando encontro pela primeira vez com o roteirista, nunca digo a ele coisa alguma, mesmo se achar que há muita coisa a fazer. Ao invés disso, faço-lhe as mesmas perguntas que fiz a mim: De que trata essa história? O que foi que você viu? Qual foi sua intenção? Em condições ideais, se fizermos isto bem, o que espera que o público sentirá, pensará, vivenciará? Com que disposição você deseja que as pessoas saiam do cinema?

Somos duas pessoas diferentes tentando combinar nossos talentos, e então é importante que concordemos sobre a intenção do roteiro. Na melhor das circunstâncias, o que surgirá é uma terceira intenção, que nenhum de nós viu no início. Na pior das circunstâncias, um processo angustiante de intenções opostas pode ocorrer, que resultará em algo sem rumo, confuso ou simplesmente ruim se desenrolando na tela.

(...)

O primeiro, e acho único, romance de Arthur Miller, "Focus", era, em minha opinião, tão bom quanto sua primeira peça produzida, "All my sons". Uma vez lhe perguntei por que, já que era igualmente talentoso nas duas formas, escolhera escrever peças. Por que desistira do controle total que um romance dá ao autor em troca do controle comunal em que uma peça primeiro vai para as mãos de um diretor e depois passa pelas mãos de um elenco, do cenógrafo, do produtor e por aí afora. A resposta foi tocante. Miller disse que adorava ver o que seu trabalho provocava nos outros. O resultado podia conter revelações, sentimentos e idéias que ele jamais imaginou existirem ao escrever a peça. É isso o que todos nós esperamos.

(...) Mencionei que, nos melhores filmes surge uma terceira intenção, que nem o autor nem o diretor podem prever. Não sei por que isto acontece, mas acontece. Em todo filme que fiz e que eu sentia que era realmente bom, um estranho amálgama foi alcançado que surpreendeu tanto o escritor quanto a mim. É esta surpresa de que falou Arthur Miller. É claro que o propósito inicial está presente. Mas todas as contribuições individuais de todos os diversos departamentos resultam num total muito maior do que as partes individuais. Fazer filmes parece muito com uma orquestra: o acréscimo de várias harmonias pode mudar, aumentar e esclarecer a natureza do filme.

Neste sentido, um diretor está "escrevendo" ao fazer um filme. Mas penso que é importante manter as palavras específicas. Escrever é escrever. As vezes o escritor inclui orientações no roteiro. Dá longas descrições nos personagens ou de ambientes físicos. Close-ups, planos gerais e outras intruções para a câmera podem estar escritas no roteiro. Leio tudo isto cuidadosamente porque são reflexos da intenção do autor. Posso seguí-las literalmente ou encontrar um meio completamente diferente de expressar a mesma intenção. Escrever diz respeito à estrutura e palavras. Mas o processo que estou descrevendo - da soma ser maior do que as partes -, isto é modelado pelo diretor. São talentos diferentes."

( Sidney Lumet - In: Fazendo filmes, Ed. Rocco, tradução de Luiz Orlando Lemos )

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