domingo, 15 de julho de 2007

coisas que eu gosto (de ver) 3:



Caro Diário, filme de Nanni Moretti, 1993.


Com esse filme "descobri" um dos grandes cineastas contemporâneos.
Premiado como melhor diretor em Cannes, o italiano Nanni Moretti é um narrador original e pessoal que, com muito humor e poesia, traça um inventário humano, político e afetivo da Itália e dos tempos modernos. Esse "Caro diário" é uma reflexão pessoal em que tudo conduz à primeira pessoa: além de dirigir, Moretti narra o filme e interpreta a si mesmo, comentando coisas que dizem respeito à sua vida, num auto-retrato cheio de ironia.
Há um teórico do cinema ( a memória anda falha, penso que seja Bela Balaz - não, Astruc, sim deve ser Astruc ) que fala do "cinema-caneta", aludindo a uma "escritura" pessoal do diretor ao realizar um filme, um cinema que remeteria à subjetividade dos poetas, à autoralidade, um cinema do "eu". Caro Diário é um cinema do "Eu", que leva à premissa do diário ( um caderno onde escrevemos nossas sensações e reflexões mais íntimas ) ao pé da letra: aliás, o filme começa com uma caneta escrevendo breves observações numa folha de papel em branco. O que vem a seguir é uma representação audio-visual dessas observações pessoais, subjetivas, confessionais. Um cinema de idéias próprias, de personalidade, um cinema de autor. Parece coisa antiga, mas é moderno.
Dividido em episódios independentes, unidos pelo tom confessional, tece pequenas porém sensíveis observações, num tom que oscila entre poesia ( a referência a Pasolini, feito num delicado passeio com sua vespa no terreno baldio onde o cineasta foi assassinado, ao som de Kholn Concert, de Keith Jarret) ora à mais pura indignação ( o delicioso momento em que Moretti "tortura" a consciência culpada de um crítico cinematográfico, lendo as baboseiras escritas por ele no jornal, antológico ), numa espécie de crônica memorialista que, longe de ser nostálgica, é sempre pautada por uma reflexão da atualidade.
Moretti não tem medo de se expôr ao ridículo, pois como bom comediante sabe rir se si mesmo e através do seu desnudamento revelar o ridículo de todos nós. O episódio que encerra o filme, "Médicos", é uma primorosa reflexão sobre o maior de nossos medos - a inevitabilidade da morte. Ao mesmo tempo, é um ácido panfleto contra o mito da infabilidade da ciência, personificado na figura do(s) médico(s). Todos têm uma opinião para o mal que aflige Moretti. As opiniões divergem, os tratamentos variam. Moretti entra numa espécie de labirinto criado pelas opiniões "abalizadas" dos senhores do saber, que aos poucos vai se tornando um pesadelo kafkiano. No final, ele não tem nada, e a impressão que se tem dos médicos é que sua ciência não passa de discurso.
Para um hipocondríaco incurável, porém cético, como eu, a esculhambação que Moretti faz dos médicos é um alento.
Da mesma forma como ridiculariza a infabilidade da ciência ( centrado na medicina ), Moretti avacalha os críticos cinematográficos, no episódio (já citado ) da "tortura moral" de um critico de cinema. Diz Moretti ao crítico: "você escreveu isso? Não tem vergonha?" No fundo, os petardos de Moretti, petardos divertidos, risíveis, mas letais, se dirigem a um unico alvo: os donos da verdade. Seja a crítica, a ciência, a mídia, a pedagogia "moderna" ( no episódio "Ilhas" mostra uma comunidade onde o liberalismo de pais "modernos" acaba criando uma ditadura cruel de crianças ), o poder estabelecido.
Por ser diretor e protagonista de seus filmes, e pelo humor, Moretti é às vezes comparado à Woody Allen. Mas diria que os dois diretores são completamente diferentes, até antagônicos. Allen não consegue ir além da crítica pequeno-burguesa em que vivem seus personagens e ele próprio. Ainda que consiga, com maestria, em vários momentos, expor a alma e as neuroses da classe média, o cinema de Allen tem um inevitável tom conformista ( ainda que sempre divertido ) de quem não consegue ir além das suas próprias fronteiras morais, políticas e psicológicas de pequeno-burguês judeu nova-iorquino. É um cinema enquadrado dentro dos limites da classe a que pertence. O máximo que consegue chegar é ao niilismo, que por si só é uma atitude típica do radicalismo pequeno-burguês, quase uma confissão da impossibilidade de se mudar o status quo.
Já Moretti é um homem de esquerda e seu cinema, ainda que mostre a mesma pequena-burguesia, a classe média italiana, tem o inconformismo de quem sabe que os limites de classe podem e devem ser abolidos, desmontados, destruídos. Seus filmes são, em maior ou menor escala, discursos políticos. Ele usa o humor como instrumento político. O que se pode verificar com mais precisão num dos primeiros filmes de Moretti, "Ecce Bombo" ( que vi na tv a cabo, divertidissímo, principalmente para quem, em algum momento da vida, participou do movimento estudantil ), em "Aprile" ( continuação direta de Caro Diário, mas não tão bom quanto este ) e, particularmente, no recente "Crocodilo", um poderoso líbelo contra a era-Berlusconni.
Se você não viu Caro Diário, convido-o a pegar carona na garupa da lambreta de Nanni Moretti e seguir com o diretor pelas ruas de Roma, a viajar com ele pelas ilhas do Adriático, a fazer uma via-crucis pelos consultórios de alopatas, homeopatas, acupunturistas, medicina alternativa, em uníssono equivocados e ignorantes, será um passeio inesquecível e revelador. Na maioria das vezes, sempre divertido e até hilariante. Mas sempre muito poético.
Depois de rir com Caro Diário, veja "O quarto do Filho", pungente drama familiar que ganhou a Palma de Ouro em Cannes, em 2001. Mas sobre este falaremos mais adiante.

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