sábado, 7 de julho de 2007

Coisas que eu gosto (de ver) 2:


Vidas Secas, filme de Nelson Pereira dos Santos de 1963.



Para mim, o melhor filme brasileiro de todos os tempos. A recriação cinematográfica da obra prima de Graciliano Ramos é tão perfeita que parece que o texto foi escrito realmente para virar filme. Aliás, Nelson disse que o roteiro de Vidas Secas foi escrito recortando páginas do livro e colando, em sequências. Não foi preciso acrescentar nada, já estava tudo ali, descrito na linguagem seca e totalmente visual do velho Graça. E o filme recria a secura e dureza das palavras do grande escritor alagoano com imagens igualmente secas e duras, mas de uma beleza incomparáveis.

Talvez a primeira fotografia ( de Luiz Carlos Barreto e João Rosa ) verdadeiramente brasileira do nosso cinema. É a poesia áspera do sertão, em sua mais perfeita tradução. A atuação dos atores é impressionante. Estranha combinação de atores profissionais - Átila Iório, grande ator da velha escola, está memorável, apesar dos relatos dos constantes atritos travados com Nelson nas filmagens, ele simplesmente não compreendia o que Nelson estava fazendo, e era compreensível, era um cinema moderno, diferente do êmulo hollywoodiano que dava(?) os parâmetros para a atuação, para a fotografia, para o cinema em geral - com não atores - Maria Ribeiro era funcionária do laboratório cinematográfico onde os filmes eram processados -, com crianças e, capítulo à parte, com animais - a cadela que interpreta "Baleia" é filmada de forma tão expressiva que sua "morte" no filme gerou protestos de grupos protetores de animais, que acreditaram que o cachorro fora mesmo morto, em cena.

Há um curta maravilhoso chamado "Como se morre no cinema", da Luêlane Correa, que relata este episódio. Para provar que Baleia vivia, tiveram que levar o cachorrinho à Cannes, onde o filme estava concorrendo e acabou recebendo o Prêmio Especial do Juri.

A cena da morte de "Baleia" foi descrita pelos escritores Leif Furhammar e Folke Izaksson no seu livro "Cinema e política" ( ed. Paz e Terra) como uma "sequência de uma tristeza quase insuportável" . Realmente, a cena é capaz de rachar mesmo o mais duro coração, mesmo o de emperdenidos maoístas como Furhammar e Izaksson, linha-durésimos, imunes a qualquer concessão melodramática que não se enquadrassem no seu crivo materialista-dialético de análise cinematográfica ( que, justiça seja feita, comparada ao relativismo, ao pedantismo delleuziano e à subjetividade do gosto pessoal que hoje impera na crítica cinematográfica, a linha dura maoísta dos escritores suecos era muito mais, digamos, inteligente e inteligível ).

"Vidas Secas" é um filme que não envelhece, suas imagens fortes e poéticas parecem se eternizar no tempo e ao mesmo tempo, parece um filme tão recente, urgente, vigoroso, moderno. E vai sempre influenciar novas gerações de cineastas ( basta compará-lo com o belo filme de Marcelo Gomes, Cinema, Urubus e Aspirina, herdeiro legítimo das imagens de Vidas Secas).

Lembro que no curso de cinema da UFF, naqueles primeiros anos da década de 80, nós os alunos dividiamo-nos ( mais por farra do que por uma verdadeira filiação cinematográfica ) em dois grupos bem distintos: os "glauberianos" e os "nelsistas". Eu sempre fui "Nelsista", de carteirinha. Não quer dizer que eu fosse anti-Glauber, da mesma forma que duvido que qualquer um do "time do Glauber" desprezasse os filmes do Nelson - que diga-se de passagem, era nosso professor. Mais ou menos professor, porque estava sempre filmando e quase nunca aparecia lá na UFF. Mas com certeza eu tinha - e tenho, até hoje - mais afinidade com o cinema do Nelson Pereira dos Santos.

Sobre o Nelson costuma-se dizer, de modo pejorativo, que ele "dá uma no prego e outra na estopa", alternando grandes filmes como fiascos. Não que essa alternância ou inconsistência seja privilégio ou defeito unicamente do NPS, mas talvez a discrepância entre os seus grandes filmes e os filmes menores seja tão notada porque os grandes são verdadeiramente colossais.
Além de Vidas Secas, considero - e são - grandes filmes brasileiros o Rio 40 graus, Boca de Ouro, Fome de Amor, El Justiceiro (um pequeno grande filme, tão menosprezado como pouco visto), Como era gostoso o meu francês, Amuleto de Ogum e, claro, Memórias do Cárcere.

A pergunta que não quer calar: já lançaram os devedês de Deus e O Diabo e Terra em Transe, do Glauber, Macunaíma, do Joaquim Pedro, Assalto ao trem pagador, do Roberto Farias. Quando vão lançar "Vidas Secas"?

Nenhum comentário: